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domingo, 2 de fevereiro de 2014

ERRA POR UM LADO, MAS ACERTA EM OUTROS...

★★★★★★★
Título: Clube de Compra Dallas (Dallas Buyers Club)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Jean-Marc Vallée
Elenco: Matthew McConaughey, Jared Leto, Jennifer Garner, Steve Zahn, Griffin Dunne
País: Estados Unidos
Duração: 117 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre a história verídica de Ron Woodroof, que sem querer foi um dos pioneiros no auxílio da pesquisa para a busca de um protocolo de tratamento eficiente para o HIV em uma época em que pouco se sabia sobre a doença e a indústria farmacêutica não tinha a mínima idéia de onde ou como desenvolver suas pesquisas e suas drogas.

O QUE TENHO A DIZER...
O filme é dirigido pelo mesmo diretor de A Jovem Rainha Vitória (The Young Victoria, 2009), o canadense nascido na provícia de Quebec, Jean-Marc Vallée.

A história tem início em 1985, durante o delicado período epidêmico de HIV ocorrido nos EUA na década de 80. Para os que desconhecem, esse surto de contágio fatidicamente ocorreu alguns anos depois do movimento de liberação sexual gay, iniciado também nos EUA, mais precisamente em São Francisco/CA, entre o fim dos anos 60 e início dos anos 70, mas que ainda ecoava não apenas pelos EUA como também pelo mundo. Por conta disso, o vírus HIV, desconhecido na época, foi vulgar e erroneamente associado à homossexualidade porque o primeiro caso descoberto e registrado foi de um paciente homossexual. A associação do vírus com essa orientação sexual gerou muita discriminação e debate (mais do que já havia), bem como a crença de que apenas eles eram um grupo de risco, pensamento ainda muito comum nos dias de hoje.

Com o tempo conseguiu-se divulgar o fato de que todos estão propensos ao contágio e que não existe um grupo de maior ou menor risco. Naquela época o preservativo existia mais como um método contraceptivo, raramente utilizado para prevenção de DSTs, e ninguém se preocupava com um vírus mortal porque o HIV era desconhecido. Principalmente depois do movimento de liberação sexual gay, pessoas faziam sexo em qualquer lugar e com qualquer pessoa, e o surto epidêmico entre os homossexuais acabou sendo maior por conta de todos esses fatores agregados.

Mas o filme não é sobre o movimento de liberação sexual, e muito menos se passa em San Francisco, pelo contrário, se passa no Texas, um dos estados mais conservadores e machistas dos EUA.

Vai contar a história verídica de Ron Woodroof (Matthew McConaughey), um texano que vive na cidade de Dallas, machista, homofóbico, ninfomaníaco, alcólatra e cocainômano, e que descobre a doença por acaso, depois de um acidente de trabalho. Ele não quer acreditar no diagnóstico, mesmo com os exames em mãos, porque para ele o HIV é uma doença de gays, como era divulgado fortemente na época. Ron vai atrás de informações sobre o vírus e a doença, descobrindo que entre os grupos de risco estão as pessoas que fazem sexo sem proteção, o que o remete a lembrar de uma relação sexual específica que ele teve no passado e a finalmente ter de aceitar a dura realidade. Durante suas pesquisas ele descobre as drogas que estavam em uso para testes, sendo uma delas o AZT. Ele volta para o hospital e exige tratamento com a droga, que é negado pela médica Eve (Jennifer Garner), a qual informa que, por estar em fases de testes, não é certeza de sua eficácia e muito menos da garantia de terem a droga verdadeira, pois a indústria farmacêutica misturava placebo entre os lotes e apenas os fabricantes tinham conhecimento de quais eram eles. Desesperado, Ron consegue comprá-la ilegalmente, administrando-a em doses exageradas e sem acompanhamento médico. Por conta da superdosagem ele se intoxica e sofre um colapso que quase o leva a morte. Acreditando que a droga ainda possa ser sua salvação, ele continua sua busca no mercado negro, o que o leva ao Dr. Vass, o qual teve sua licença cassada nos EUA por tentar enfrentar as gigantes farmacêuticas, e agora trabalha no México, desenvolvendo pesquisas principalmente com soropositivos. A observação cientifica do médico é de que o AZT destruia todas as células saudáveis do sangue e que, embora a doença não fosse curável, havia a possibilidade de conviver com ela desde que haja a manutenção constante dos níveis saudáveis do sangue, utilizando suplementos vitamínicos e protéicos, e uma droga de combate ao vírus menos agressiva, além da instrução de que o paciente deve ficar longe do uso de outras drogas e manter uma alimentação regular e saudável. Ron tem uma melhora significante nos três meses que fica em tratamento com o médico, e volta para os EUA com o interesse de fazer de sua descoberta uma mina de dinheiro ao contrabandear os produtos, já que eles ainda não eram aprovados pela agência nacional de controle, mas também não eram considerados ilegais. Com o tempo Ron percebe a melhora e a satisfação de seus clientes, bem como um aumento constante de novas pessoas que o procuram em busca  do novo tratamento. Pensando nisso, e com a ajuda da travesti Rayon (Jared Leto), ele resolve ampliar seu negócio de forma mais organizada e abre o seu Clube de Compra Dallas, onde para ser sócio é necessário preencher uma ficha médica, assinar um contrato de responsabilidade e pagar US$400, dando direito ao sócio de ser fornecido constantemente com os suplementos. Ron passa a não pensar mais nos lucros quando a indústria farmacêutica se sente ameaçada por suas descobertas e passa a interferir em seu trabalho e na pesquisa que ele resolveu desenvolver por influência do Dr. Vass. Aos poucos ele consegue provar a Dra. Eve que o AZT reduz a expectativa de vida de um paciente, enquanto com os produtos que ele comercializa a expectativa aumenta, conseguindo uma aliada na guerra que ele trava contra a agência nacional de controle.

Sem dúvida o filme aborda todo esse período na história da doença e do desenvolvimento de uma droga farmacêutica com muito empenho, bem como os demais assuntos paralelos, como o preconceito e a discriminação sofrida pelos soropositivos, a falta de informação, a dominação corporativa e a dificuldade de todas as pessoas (saudáveis ou não) em lidar com tudo isso.

Muito embora o roteiro esteja presente na temporada de premiações na categoria Roteiro Original, algumas coisas chegam a incomodar aos mais atentos. Mesmo a história sendo dividida durante os dias de vida do personagem principal, a impressão que se tem é que tudo acontece de uma vez só, não havendo uma percepção de passagem de tempo muito efetiva. Os roteiristas também parecem não ter prestado muita atenção em personagens coadjuvantes chaves que surgem repentinamente na história e que nunca sabemos de onde são ou de onde surgiu o grau de relação enre eles, como o policial Tucker (Steve Zahn), a secretária e ajudante Denise (Deneen Tyler) ou até o caso romântico de Rayon. O desenvolvimento da relação entre Ron e Rayon também não soa muito convincente, já que os preconceitos e homofobia do personagem chegavam a níveis de intolerância máxima. Também é pouco explorada a percepção do personagem sobre a gradiosa descoberta que faz, ou da sua transição de um homem oportunista para um pesquisador por acidente que contribuiu imensamente para pesquisas futuras e na evolução de drogas farmacêuticas efetivas. O Clube de Compra Dallas também teve uma grande popularidade nos EUA, ultrapassando as fronteiras do Texas para outros estados do país, mas isso também é pouco pontuado, sendo apenas referido em alguns momentos enquanto Ron gerencia seus negócios por telefone.

O mérito do roteiro é definitivamente na congruência de várias situações e dificuldades que foram sofridas e a importância de Ron Woodroof em criar e divulgar, talvez, o primeiro protocolo de tratamento efetivo para o HIV.

Mesmo a história sendo fortemente baseada em fatos reais, muitos dos acontecimentos e personagens são fictícios, como a travesti Rayon e Dra. Eve. Segundo os roteiristas, esses personagens foram criados em referência aos vários travestis soropositivos e médicos entrevistados durante a pesquisa. A personalidade real de Ron também é contraditória, pois embora ele mesmo tenha afirmado em uma entrevista concedida ao roteirista Craig Borten de que a sua convivência com os gays tenham mudado consideravelmente sua percepção sobre eles, pessoas próximas chegaram a afirmar que ele não era homofóbico e, na verdade, era bissexual, e que seu comportamento mostrado no filme é exagerado, já que ele era um tipo intimidador, mas não violento.

É interessante também que, embora o Clube tenha tido uma grande popularidade nos EUA naquela época, poucas informações são encontradas sobre ele e sua existência é desconhecida pela maioria. O próprio ator que interpreta o personagem afirmou que desconhecia totalmente a existência de Ron e do Clube, e Jennifer Garner também disse em uma entrevista que leu diversas revistas científicas e jornais durante aquele período e não encontrou qualquer referência sobre o Clube e a importância que ele teve no tratamento. 

O filme concorre a seis Oscars, incluindo Melhor Ator a Matthew McConnaughey e Ator Coadjuvante a Jared Leto. Embora o talento de McConaughey já tenha sido reconhecido ainda na década de 90 em filmes como Tempo de Matar (A Time To Kill, 1996) e Amistad (1997), passou um tempo se dedicando a filmes de ação e comédias românticas pouco expressivas e apenas nos últimos anos tem se dedicado a papéis mais densos e complexos como nos filmes Killer Joe (2011), Obsessão (Paperboy, 2012), Amor Bandido (Mud, 2012) e Magic Mike (2012), todos personagens sulistas por excelência, porém interessantes e distintos, que finalmente chamaram a atenção da crítica e da Academia. Sem dúvida a transformação física que o ator sofreu é relevante (ele emagreceu mais de 20kg para o papel), mas ao contrário do processo similar que Tom Hanks realizou em Filadélfia (Philadelphia, 1993), aqui o ator não se coloca em uma posição submissa e martirizada, ele desempenha um papel forte e autoritário, superando obstáculos e lutanto o tempo todo contra seu próprio corpo devido a debilitada condição que se encontra, conseguido transpor sentimentos sem caricaturas ou cliches. Jared Leto também passou pela mesma transformação, emagrecendo mais de 10kg para sua personagem. Sua atuação também é notável, e mesmo representando um tipo estereotipado, sua perfomance é tão delicada e sensível que não aparenta artifical, forçado ou vulgar.

A atuação só é sofrível mesmo com Jennifer Garner. Para quem acompanhou sua trajetória no seriado Alias, sabe que ela realmente pode atuar, mas agora chega a espantar a falta de talento que ela apresenta filme após filme (com excessão de Juno, talvez por ter sido bem dirigida). Mas não é possível compreender o que aconteceu com essa atriz que, quanto mais os anos passam, pior ela fica, atuando de maneira até infantil, jogando no lixo o Globo de Ouro que já recebeu outrora pelo papel de Sidney Bristow.

Os conflitos são muito bem colocados e raramente o diretor apela para uma cena dramática excessiva, mantendo o filme sempre dentro do tom mais sincero e realista possível e emocionante por conseguir nos inserir nas condições vivenciadas pelos personagens. O próprio diretor afirmou que o filme sofreu vários problemas financeiros e quase não pode ser finalizado por falta de verbas. Matthew investiu dinheiro pessoal para o filme, bem como outros atores como Brad Pitt e Ryan Gosling, além dos diretores Marc Forster e Craig Gillespie. Com orçamento apertado, as filmagens duraram apenas 25 dias, não houve iluminação cenográfica ou ensaios, e os atores não foram mantidos na pós produção para correções. Mas o mais interessante de tudo é a produção ter sido filmada inteiramente com apenas uma câmera de mão capaz de gravar apenas 15 minutos, e o trabalho de edição realizado foi tão bem feito que se essa informação não tivesse sido divulgada, seria imperceptível. Não é à toa que o filme também concorre ao Oscar nas categorias de Edição, Direção e Filme, porque apesar de alguns poucos defeitos, sabe-se que eles existem por conta das limitações técnicas e não por incompetência, e o tanto que foi feito com tão pouco resultam em um belíssimo e admirável trabalho que merece ser respeitado por conta de sua grandiosa intenção.

CONCLUSÃO...
Frente a tantos problemas orçamentais que a produção teve em conseguir fundos para concluir as filmagens, realmente é um trabalho bastante digno que não apenas é baseado em fatos reais como também conta uma parte muito importante da história da descoberta do HIV e pesquisas para seu tratamento. Não podemos ignorar o fato de que isso tudo ocorreu em uma época em que ninguém tinha idéia de como combater ou começar a combater a doença, e que a indústria farmacêutica também não teve outra alternativa a não ser produzir os coquetéis e testar diretamente em humanos e de forma aleatória frente a urgência cobrada da situação. Os primeiros coquetéis produzidos possuiam uma composição completamente diferente da atual e eram muito mais agressivos (embora os efeitos colaterais sejam inúmeros e igualmente fortes), mas hoje em dia o seu uso é efetivo e o aumento da expectativa de vida é comprovado e bastante considerável em comparação com o da época do início das pesquisas. O filme também peca neste aspecto, em não esclarecer isso ou informar o espectador de que os tratamentos mostrados no filme são antigos e ultrapassados frente aos avanços farmacêutico e dos protocolos médicos de tratamento disponíveis hoje em dia.

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