Translate

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

NÃO É EUROPEU, MAS AINDA SIM UM DRAMA FAMILIAR...

★★★★★★★★★☆
Título: Álbum de Família (August: Osage County)
Ano: 2013
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: John Wells
Elenco: Meryl Streep, Julia Roberts, Chris Cooper, Margo Martindale, Ewan McGregor, Juliet Lewis, Abigail Breslin, Benedict Cumberbatch, Dermot Mulroney
País: Estados Unidos
Duração: 121 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Relações familiares nunca foi algo fácil de ser interpretado ou definido, e é o que acontecerá na família de Violet, uma mulher com câncer em estado terminal, viciada em calmantes, que acabou de perder seu marido e agora deverá confrontar pedaços dela mesma em cada uma de suas filhas.

O QUE TENHO A DIZER...
Album de Família é dirigido por John Wells, seu segundo longa metragem como diretor, tendo mais experiência como roteirista e produtor de seriados. Mas o interessante aqui é o roteiro ser assinado por Tracy Letts, baseado em sua própria peça homônima. É sua terceira adaptação de três peças teatrais próprias, sendo a primeira delas Possuídos (Bug, 2006) e a segunda Killer Joe (2011), ambos dirigido por Willian Friedkin, diretor mais conhecido pelo clássico O Exorcista (The Exorcist, 1973) e que poucas pessoas tem conhecimento disso pois não foram filmes de sucesso comercial, muito embora muito aclamados pela crítica e pelo público do circuito mais alternativo.

O tema deste filme é distinto tal qual as outras adaptações. Enquanto Possuídos trata sobre uma personagem que se afunda em um crescente distúrbio de personalidade e Killer Joe é uma comédia gótica violenta e absurda sobre uma crescente sucessão de fatos desastrosos, Album de Família também segue essa mesma construção crescente de infortúnios e segredos desastrosos responsáveis pela completa destruição das fundações familiares. Tracy Letts tem se destacado como um grande escritor, roteirista e dramaturgo contemporâneo no teatro e no cinema norteamericano por conta da profundidade e complexidade de seus personagens, além dos ambientes que eles vivem serem como uma metáfora transformadora dentro de idéias filosóficas ou psicossociais. Ele tem um estilo diferenciado na dramaturgia, construindo seus personagens fundamentados em perfis psicológicos e muitas vezes psiquiátricos distintos, que podem parecer exagerados na densidade, mas não deixam de ser exemplos verdadeiros. Ele também seguisse à risca as idéias deterministas já expressadas por Sartre, Marx e outros pensadores de que o homem é produto do meio, e não é à toa que os ambientes que ele situa suas histórias tem uma grande importância na narrativa e nos conflitos da trama.

É por isso que esta história se passa no centro-sul dos Estados Unidos, no condado de Osage, em Oklahoma, uma região que tinha um dos maiores números de nativo americanos, mas que foi reduzido significantemente depois de epidemias e guerras de dominação territorial, além de ter sido palco da chacina de índios Osage no ínício da década de 20, realizado por brancos para evitar o crescimento econômico dos indígenas nativos e tomar seus territórios e royalties de exploração de petróleo. Ou seja, historicamente um território marcado por violência e estupidez, que é citado no filme quando a racista Violet (Meryl Streep) narra as dificultades de ter crescido naquele condado e a brutalidade necessária para que sua família pudesse sobreviver nele naquela época.

A narrativa desse fato dada pela personagem é crucial para compreender a original natureza de todos, seus traumas e tragédias, já que são três gerações que se reencontram após o falecimento do patriarca. Letts não apenas se utiliza do determinismo para dar o ponto de partida para toda construção dos personagens e conflitos, como também abusa da teoria psicanalítica de que os filhos são a perpetuação dos erros dos pais, e de que há a tendência dos mesmos em reproduzirem e repassarem os mesmos traumas aos seus descendentes, como uma herança, geração após geração.

O filme é um drama familiar que não chega a ser complexo ou confuso já que os personagens tem personalidades parecidas entre si, mudando apenas o grau de intensidade, justamente por serem baseados na teoria já mencionada, mas é denso, algumas vezes pesado, com diálogos que ferem uns aos outros devido ao constante comportamento hostil. Isso fica claro na sequência em que Barbara (Julia Roberts) questiona sua irmã, Ivy (Julianne Nicholson), sobre o cinismo que ela agora apresenta, a qual oferece uma resposta compreendida como uma nova lei de sobrevivência pra ela.

A perpetuação dos erros é tão clara e nítida que temos Violet e Mattie Fae (Margo Martindale), irmãs, filhas de uma mãe que elas mesmas se referem como "uma mulher diabólica". Ambas tem personalidades bem parecidas, mas o comportamento de Violet é pior, mais explosivo e maldoso, talvez para compensar o complexo de "nunca ter sido a filha predileta, mas ter se acostumado com isso", como ela mesma diz em uma cena. Violet possui três filhas: Barbara, Ivy e Karen. Cada uma delas possui uma parte de sua personalidade, uma mais, outra menos, mas que deixam claras as heranças comportamentais e psicológicas herdadas, e juntas representam toda a engrenagem da história.

Barbara é a filha mais velha, a "predileta", é a que possui a maioria das características negativas e positivas de Violet, mas que tenta não reproduzir em sua filha, Jean (Abigail Breslin), os mesmos erros da mãe, mesmo que impossível em algumas determinadas situações. Seu casamento com Bill (Ewan McGregor) está em ruínas, tal qual estava o casamento de seus pais.

Ivy é a filha do meio, o "defeito" da família, talvez por ser a única que possui a maioria das características do pai. É a que cuidou de Violet durante anos tanto quanto ele, e que conquistou o afeto da mãe unicamente pela condição de dependência, já que foi a única das filhas que esteve presente.

Karen é a filha mais nova, a "desprezada", e que notoriamente se "acostumou" com a situação, tal qual como sua mãe. Essa personagem é a mais deslocada de todo o filme, a única com um comportamento que não se encaixa em lugar algum, e não é à toa que é sempre encontrada no canto da história ou de escanteio no filme, que de forma simbólica deixa nítida a falta de atenção e cuidado que ela sofreu pela família por nunca ter sido uma filha predileta, ou alguém que se destacasse. Ela é a que tem a personalidade mais distinta de todos por ter vivido sempre sozinha, dentro de um mundo imaginário e particular do qual ela nunca conseguiu sair, além de extremamente carente de afeto e atenção, deslumbrada com o pouco que consegue. É uma personagem pequena e que a maioria das pessoas provavelmente não darão muita atenção, mas ela tem muitos significados em todo o contexto, e a relação distante entre ela e sua mãe é chocante, como no jantar de luto, em um dos poucos momentos que Karen abre a boca para dizer algo. O olhar ferino e desdenhoso de Violet sobre ela já poupa o espectador de qualquer maior detalhe sobre a relação entre elas.

Frente a essa breve descrição das três personagens chaves da história, temos toda a trama que se completa em torno de cada uma delas, com conflitos muito semelhantes uns dos outros, como a mostrar que, embora uma familia esteja em ruínas, vivendo separadamente uns dos outros, os laços que os mantêm conectados ultrapassam uma mera condição sanguínea e genética. É muito mais do que isso, e são definitivamente as heranças psicológicas herdadas entre eles e a tragédia.

Quando o filme é analisado dentro deste contexto mais profundo e conflituoso de uma estrutura familiar, seu roteiro e o desenvolvimento dos personagens fazem muito mais sentido. Obviamente que há uma ou outra cena com excessos dramáticos, mas são relevantes por ser uma adaptação teatral, e esse tom ter sido mantido em momentos oportunos como o jantar de luto do patriarca ou no almoço entre Barbara, Violet e Ivy, e também para ampliar a personalidade de cada um e a semelhança entre eles ser mais nítida.

Há muito mais que pode ser observado no filme e nas relações desastrosas entre os personagens, mas são tão meticulosos, subliminares e muitas vezes delicados que são indescritíveis em palavras, apenas perceptíveis quando assistidos por este ponto de vista analítico.

Por incrível que pareça, é um filme que, mesmo se mantendo dentro de um padrão dramático Hollywodiano, é bastante diferente dos dramas familiares comumente produzidos e, talvez, um dos mais relevantes no circuito comercial que assisti nos últimos anos. Não é uma observação muito comum entre as críticas que li até o momento, mas por se tratar de uma obra de Tracy Letts é de se esperar que há muito mais na história do que a própria história mostra, e é necessário estar atento a isso, pois só quem já conhece o estilo do autor, por conta de suas duas adaptações anteriores, poderá compreender todos esses intercursos com mais facilidade. Também há espaço para algumas reviravoltas na trama, simples, porém inesperadas, como também é parte do estilo do autor e roteirista.

Não há o que se falar sobre as atuações. Meryl Streep dispensa comentários e Julia Roberts está segura, e até mesmo aqueles que se parecem deslocados ou meio fora de contexto, isso é apenas uma impressão superficial. É interessante perceber que não há uma similaridade sequer entre os atores escolhidos ao ponto do espectador realmente considerar aquilo como uma família de fato, como se essa escolha um tanto aleatória tenha sido proposital para representar todo esse caos que a trama alimenta, e a conexão entre eles ser única e exclusivamente, como já dito, pelos seus conflitos e semelhanças psicológicas.

Infelizmente o filme não concorreu na categoria de Roteiro Adaptado nas premiações mais populares (com excessão do Writers Guild), o que é uma pena, pois novamente ignoram mais um trabalho consistente e desafiador de Tracy Letts.

CONCLUSÃO...
Sem dúvida um filme que deve ser analisado além do que ele mostra superficialmente, uma representação muito verdadeira dentro de seus exageros dramáticos de que os filhos são espelhos de seus pais e que quebrar os laços dessas heranças traumáticas e psicológicas são desafiadoras e talvez impossíveis, pois são justamente isso que os conectam (atenção para a revelação que Ivy faz quando diz que não poderá ter filhos, como um simbolismo da quebra desta perpetuação de heranças). Mais um roteiro brilhante desenvolvido por Tracy Letts, que novamente usa e abusa de construções psicológicas densas para seus personagens, fundamentados e teorias e observações verdadeiras, nos propondo a pensar e repensar no que realmente significa os laços e as estruturas familiares, seus erros e acertos, o que devemos manter para as gerações seguintes e como quebrar as heranças trágicas.

Nenhum comentário:

Add to Flipboard Magazine.