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quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

FILHA DA ANARQUIA...

★★★★★★★★★☆
Título: Rita
Ano: 2014-2017
Gênero: Comédia, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Mille Dinesen, Lise Baastrup, Ellen Hillingsø, Carsten Bjørnlund
País: Dinamarca
Duração: 50 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Uma professora dedicada não consegue ser tão dedicada assim na sua vida particular. O que ela ensina nem sempre é o que ela faz, e já passou da hora de ela aprender muitas coisas.

O QUE TENHO A DIZER...
"Sua mãe é uma das pessoas mais anarquistas que existe", é o que o ex-marido de Rita diz a seu filho em um dos episódios da primeira temporada. E sem dúvida esta é a maneira mais clara e objetiva de definir a protagonista dessa série dinamarquesa, criada, escrita e produzida por Christian Torpe, que poderia ter ficado conhecido por esses cantos se sua adaptação para a TV de O Nevoeiro (2017) tivesse sido boa, o que não foi em nenhum aspecto. O que é até espantoso, porque o material que ele criou e desenvolveu aqui é de uma sensibilidade e relevância que raramente encontramos. O sucesso da série chegou a render a mini-série Hjørdisspinoff sobre a personagem de mesmo nome que acabou ganhando imenso destaque, além das tentativas de duas adaptações estrangeiras, uma holandesa e uma francesa, tamanha a popularidade alcançada.

Para Rita (Mille Dinesen), regras e limites não são bem seus melhores amigos, principalmente se partirem da psicoterapeuta escolar. Suas transgressões tem propósitos, desde os mais justos e coerentes, até os mais inflamados e egoístas, numa rebeldia natural que dificulta a proximidade com adultos, mas que cria fortes laços de afeição com os mais jovens. E por isso que, mesmo a contragosto de muita gente, há aproximadamente 13 anos ela é considerada a melhor e mais respeitada professora da escola Islevgard, em Copenhagen. Mas ao mesmo tempo que por um lado ela deixa o caos por onde passa, por outro conquista o respeito e a admiração de muitos, os quais a enxergam como um grande agente transformador, um modelo de coragem e perseverança por justamente não ter receios de enfrentar desafios e obstáculos. Pessoas que pensam exatamente assim porque um dia já foram auxiliadas pela porção generosa e altruísta de sua personalidade, mesmo que sua ajuda não tenha sido solicitada, colocando-a em situações comprometedoras e incomodando mais gente do que deveria.

E Rita é assim mesmo, uma bonecona que fuma, bebe e não tem filtro (interessante que ela não fala palavrões), mas que possui uma descência humana e um senso de responsabilidade social que muitos outros não tem, se importanto muito mais com problemas alheios do que os seus próprios, não medindo esforços para se intrometer em um assunto quando percebe que a dignidade de alguém está sendo ferida de alguma forma. Ela não chega a ser tão autodestrutiva como a delegada Grace Hanadarko (Holly Hunter), do falecido Saving Grace (2007-2010), mas as similaridades são muitas. O que difere as duas é que Rita não é egoísta, mesmo tendo tido uma infância e uma adolescência rodeada por pessoas que não sabiam manter os valores de suas palavras. E da mesma forma como a vida foi sua melhor escola, é usando esse material que ela se impõe em suas aulas e fora delas.

A complexidade da personagem não é uma novidade. Enquanto Rita tem sua alma "anarquista", ela também impõe regras sem perceber, principalmente aos outros, no velho ditado do "faça o que digo, mas não faça o que faço", porque o maior medo dela, principalmente com seus filhos, é de se tornarem outras versões dela mesma. O próprio fato de sua maior regra de vida ser "não ter regra alguma" já faz dela uma contradição por excelência. Criar dimensões opostas de personalidade é a ferramenta mais eficiente para uma gama de infinitas situações e possibilidades, onde o personagem só terá seu momento de redenção ou resolução quando aquele que o escreve e o desenvolve decidir impor mais um lado que o outro. E a grande angústia da existência de Rita é o constante embate dela com ela mesma: sua ânsia de ser diferente, mas um excesso de cordas e amarras que interrompe o caminho a isso. Há um momento em que ela questiona Ricco, seu filho mais velho, sobre as influências que ele tem sofrido de sua mulher. Ele responde dizendo que ele quer ter essas influências porque ele quer ser diferente, e Rita simplesmente aceita, porque percebe que, no fundo, é o que ela também gostaria. Portanto, ou ela muda, ou suas dificuldades continuarão sendo as mesmas. É este o conflito central de tudo, e o conflito que ela vive há 44 anos.

É gratificante quando assistimos um filme ou uma série de televisão onde personagens sejam motivadores ao mesmo tempo que enxergamos neles nossos próprios defeitos e virtudes. Não apenas nos motivamos com as atitudes modificadoras de Rita, como também nos simpatizamos com seus erros, falhas, equívocos e acertos. Choramos, rimos, nos surpreendemos e nos revoltamos, porque a interpretação de Mille Dinesen é tão consistente e marcante como qualquer outro personagem que adoramos odiar, como Dexter, Dr. House, ou Saul Goodman. Também nos identificamos com outros personagens, como a vulnerabilidade, insegurança e fidelidade de Hjørdis (Lise Baastrup), a sensibilidade de Rasmus (Carsten Bjørnlund), ou as frustrações profissionais e pessoais de Helle (Ellen Hillingsø). O seriado oferece com esses personagens (assim como outros que surgem no decorrer dos episódios) uma experiência de não apenas conhecê-los, como também participar de um desenvolvimento progressivo e empoderador ao longo das quatro temporadas. Mérito do roteiro, de personagens extremamente bem escritos e de interpretações humanas.

Situar a história em um ambiente escolar soa muito metafórico, como boa parte do que Torpe desenvolveu faz. A noção que carregamos do período escolar ser uma das melhores fases de aprendizados e descobertas é bem explorada, mas de uma maneira tão abrangente e realista ao ponto de nunca terem a intenção de nos convencer disso. Pelo contrário, nos mostra exatamente que não é bem assim que todo mundo pensa, porque as impressões são completamente diferentes para quem sofre. E por isso as dificuldades retratadas não são feitas de maneira idealizada e dicotômica, como professores sempre batalhando contra a ignorância. Pelo contrário, todos tem defeitos. Nem todo o corpo docente é ilustre, assim como nem todo aluno é ignorante. Nem todo diretor é competente, e nem todo mundo tem boas intenções. Os entraves e obstáculos existem tanto para quem ensina, como para quem aprende.

Os esforços incondicionais de professores em querer ser uma referência importante já foi enredo em clássicos como Ao Mestre Com Carinho (1967), ou Sociedade dos Poetas Mortos (1989), este que nada mais é do que uma releitura do primeiro. E também de produtos genéricos e mais modernos, como Mentes Perigosas (1995) e O Sorriso de Monalisa (2003), igualmente releituras, adaptados para suas respectivas épocas. Todos com temáticas onde professores lutam contra a ignorância da juventude ou da sociedade para mostrar que a educação é o melhor futuro da dignidade. Com Rita isso não seria diferente, mas o cativante de sua história é o que a faz ser tão certa na sua vida profissional, mas tão errada na sua vida pessoal.

O roteiro é cheio de diálogos inteligentes e de certa forma reflexivos em situações que se articulam o tempo todo em cima de ironias. Seja a criança do comportamento adulto e do adulto de comportamento infantil, ou do tipo de adulto que uma criança gostaria de ser, a responsabilidade daquilo que passamos aos nossos descendentes é unicamente nossa, e nossas maiores falhas partem de dois principais princípios: do espelhamento de comportamento, de crianças que imitam comportamentos adultos a partir do momento que admiram um modelo, à transferência de responsabilidades, dos pais que fazem seus filhos serem aquilo que eles próprios não conseguiram ser. Duas situações discutidas com exaustão ao longo da série. Além disso, o drama também é construído em cima de sofrimentos sociais e familiares do cotidiano, não sendo à toa que assuntos como assédio moral (bullying), distância familiar, infidelidade e insegurança sejam bastante recorrentes. E embora possa soar repetitivo, se torna muito assertivo ao serem mostrados das mais variadas formas, justamente com o intuito esclarecedor e informativo. E a função de Rita nisso tudo é quebrar paradigmas, ou ao menos tentar. Como ela mesma diz, sua obrigação é salvar os filhos de seus próprios pais, já que são os adultos quem estragam as crianças. Mas como ela consegue nos convencer de que está certa quando ela mesma é o resultado de uma cascata de erros? Pelo simples fato de ter plena consciência de cada um dos erros que comete e não se envergonhar de expô-los em momento algum.

Rita é uma comédia dramática que não usa o humor para aliviar o drama, mas para complementá-lo, e mostrar os lados agridoces e amargos de sua vida sem qualquer rodeio. Os episódios são construídos em cima de temas, como uma aula a ser desenvolvida, e tudo acontecerá em torno daquele assunto do dia, seja de maneira literal ou metafórica. Pode parecer um pouco forçado, mas funciona no propósito de construir uma discussão produtiva, com prováveis morais a serem compreendidas pelo espectador. E embora a vida da protagonista seja uma coletânea de traumas e erros muitas vezes até involuntários, existe um otimismo confortante por trás disso tudo que parte justamente de sua total ausência de medo de tentar, além dos episódios nunca se extenderem nos dramas, sempre interrompendo no momento que a gente pensa que poderia ter um pouquinho mais, mas se assim fosse, perderia completamente sua essência, que é ser duro, seco e emocionalmente limitado como sua personagem.

É um dos melhores seriados na Netflix e que ninguém fala a respeito. Complicado quando percebemos que o público definitivamente está condicionado apenas àquilo que os algorítmos e hashtags propõem, e como também dificilmente não consumimos produções de outras nacionalidades não porque as outras línguas soam estranhas, mas porque não ser em inglês soa estranho. É claro que o fato de ser em uma língua totalmente diferente significa ter uma perda de conteúdo muito grande com diálogos informais que não fazem sentido se traduzidos literalmente, ou piadas que não teriam qualquer coerência nas legendas, mas de qualquer forma, absorver um conteúdo diferente daquilo que estamos habituados engrandece nossa capacidade de observação.

Com mudanças bruscas nos acontecimentos e na estrutura narrativa para preencher buracos e responder dúvidas das temporadas anteriores, a quarta temporada encerra os quatro anos de existência do seriado. É a mais fraca e óbvia de todas, mas esclarecedora o suficiente para complementar muito daquilo que já imaginávamos, mas não tínhamos certeza. Torpe oferece uma conclusão justa e coerente, uma resolução satisfatória com toda a jornada da personagem que finalmente aprende com as surras que a vida lhe deu, e literalmente com a surra física e moral que leva de Hjørdis em um dos momentos mais emocionantes da temporada (e talvez esperada por muita gente).

Um misto de sensações e emoções viciante e que nos mostra pontos de vista sobre a vida de forma bastante única, fugindo da estética norteamericana de se construir uma narrativa, sendo cativante unicamente por ser simples e respeitoso, sem apelações ou sensacionalismos. Se a quarta temporada foi realmente a última, sua conclusão foi sincera e otimista o suficiente como ela nunca escondeu ser, mas também nunca se obrigou a ser. E para aquele que se deixar conquistar por Rita, o velho e conhecido sentimento de vazio, de estar órfão de um seriado e de uma personagem tão inspiradora como ela é, será inevitável.

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