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domingo, 10 de dezembro de 2017

O LABORATÓRIO DO VOYEUR...

★★★★★★☆☆☆☆
Título: Voyeur
Ano: 2017
Gênero: Documentário
Classificação: 16 anos
Direção: Myles Kane, Josh Koury
Elenco: Gay Talese, Gerald Foos,
País: Estados Unidos
Duração: 96 min.

SOBRE O QUE É O DOCUMENTÁRIO?
Sobre um homem que adquiriu um motel apenas para observar seus hóspedes, algo que fez durante aproximadamente 30 anos sem qualquer pessoa sequer imaginar ou descobrir.

O QUE TENHO A DIZER...
Ser voyeur não é um mérito apenas de fetichistas sexuais. A denominação daquilo que outrora foi estritamente considerado uma desordem sexual, acabou tendo outras derivações ao longo dos tempos, sendo um dos desejos (ou práticas) mais intrínsecos e natos do ser humano que nem o próprio ser humano se dá conta. É engraçado que as pessoas comuns tendem a relacionar a prática diretamente com o sexo, porém ela não é necessariamente isso, mas uma realização de um prazer pessoal, uma satisfação pela observação do comportamento alheio, seja ele qual for. Você pode achar que não seja assim, justamente por essa analogia sexualizada ser tão forte. A verdade é que, no fundo, todo mundo é.

Seja observando as pessoas à sua volta em um ambiente, seja querendo saber o que esteja acontecendo por trás da silhueta em uma janela, seja querendo saber do que se trata o barulho do outro lado da parede ou no quarto vizinho do hotel, seja verificando constamente suas redes sociais nos perfis alheios de pessoas conhecidas ou anônimas, o voyerismo é simplesmente a saciação do desejo de querer saber o que outras pessoas façam. Comumente confundida com a simples curiosidade. Mas quem disse que ser curioso não é ser voyeur?

A prática era muito relacionada à observação anônima de uma situação privada, mas essa denominação também foi perdendo forças, já que ela também pode acontecer em situações onde o(s) indivíduo(s) observado(s) esteja(m) ciente(s) disso, pois assim como existem aqueles que gostam de observar, existem aqueles que gostam de se expor e serem observados, como é bastante explorado no filme De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1999), de Kubrick.

A questão é que, a impressão que se tem é que a sociedade relacionou o voyeurismo unicamente ao sexo, à desordem e à perversão, justamente para tentar negar que seja uma prática comum, presente no nosso cotidiano das mais diversas formas, e assim vivemos na hipocrisia de atribuir o fato apenas àqueles que determinamos serem "perturbados" ou sexualmente pervertidos, e assim nos mantemos distantes da realidade.

Foi assim que Alfred Hitchcock abordou a prática em diversos de seus filmes, como Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), talvez a maior referência do gênero no cinema comercial. O diretor propositalmente utilizou o voyeurismo não apenas para desenvolver a história, mas também como técnica para criar o crescente suspense e induzir o espectador ao interesse, transformando-o em um voyeur sem ele mesmo perceber, persuadindo-o a ter os mesmos interesses que o os personagens. O interessante desse filme é que o voyeurismo abordado é da forma mais abrangente possível e não restrita apenas a desejos sexuais, pois o personagem de James Stewart não realiza a prática para cultivar sua libido, mas para saciar o desejo pela curiosidade e o prazer/satisfação pessoal que isso lhe proporciona conforme desvenda os interesses e mistérios relacionados ao objeto observado com a progressão dos fatos. Ele passa a se interessar pelo cotidiano alheio por consequência do tédio que se encontra ao estar preso a uma cadeira de rodas, e aos poucos sua rotina de observador oculto igualmente influencia seus amigos que o visitam, atraindo o interesse dos mesmos pela vida do vizinho. O que o protagonista faz com os demais personagens é exatamente o que ele e o diretor fazem com seu espectador, e por isso o filme também é considerado um grande experimento de massa, pois todas as pessoas que o assistem acabam tendo os mesmos desejos e vontades do protagonista, que é um voyeur.

Dar toda essa introdução é importante para que o documentário assinado pela Netflix seja visto por outros olhos. Ele vai contar a história de Gerald Foos, um senhor de 78 anos que, por 30 anos, observou cada um dos hóspedes do motel em que foi proprietário. Foos é um cara comum, inteligente, reservado, eloquente, engraçado e um grande contador de histórias, coisas que não esperaríamos de alguém que pudesse ser mentalmente perturbado, obsessivo ou sexualmente perverso. Foos relata que a vontade de observar as pessoas em um ambiente controlado foi sua grande motivação para comprar a propriedade na década de 60. Segundo ele, o motel era perfeito para tudo aquilo que ele queria, sendo exatamente como ele imaginava. Para ele, observar a todos por cima era como brincar de deus, numa analogia até bastante segura e interessante, já que deus seria o maior voyeur que existe.

É claro que, dentro da cabeça de Foos, algo deve acontecer, não por ser voyeurista, mas por ter alimentado isso por tanto tempo da forma como fez. Seu acervo de inúmeras coleções, seu comportamento metódico, suas anotações detalhadas, o empenho e a dedicação na realização dos processos, até dão indícios maníacos e psicóticos, mas que em nenhum momento interferiram negativamente na sua vida ou na das outras pessoas, até mesmo as observadas, já que os registros de Foos eram apenas manuscritos, numa época que a tecnologia não era tangível como é hoje, além de nunca ter revelado identidades. Dizer que tudo o que ele fez faz parte de uma normalidade social, não é correto, mas também denominá-lo como uma pessoa perturbada também não é. Há um meio termo, algo que acontece entre um e outro, mas que não conseguimos identificar.

Gerald Foos sempre tratou o assunto como um grande experimento, tanto que ele se refere ao seu lado voyeurista em terceira pessoa, apenas como "O Voyeur". Existe uma ética que ele cumpre à risca, que o distancia daquilo, como a querer valorizar o olhar científico do que faz e impedir a influência pessoal sobre o que exerce, mesmo que ele tenha quebrado essas regras em algumas situações. Tanto que, por diversas vezes, ele criou ambientes adversos para observar o comportamento das pessoas, como o experimento que fez com a maleta de dinheiro, algo que, dentro de toda a situação controversa e polêmica, acabou sendo até genial. Mas errou quando o lado pessoal resolveu interferir diretamente em um momento que envolveu um hóspede traficante de drogas.

Sim, a história de Gerald é interessante, e ele sabia disso. Por essa razão, na década de 80, ele procurou Gay Talese, um renomado jornalista do The New York Post que havia acabado de publicar um de seus maiores best sellers, A Mulher do Próximo (1980), um grande marco do Novo Jornalismo, que além de ser investigativo, também é participativo, revelando o painel contemporâneo dos costumes sexuais que surgiram nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos. Após ler o livro, Foos acreditava que Talese era o jornalista perfeito para o qual ele deveria contar sua história e publicá-la. E foi por uma carta que a relação entre eles teve início.

Toda essa relação entre Foos e Talese é bem desenvolvida e explorada no documentário, bem como os pormenores que acabaram levando a reviravoltas interessantes na história. Tudo baseado na omissão de informações por parte de Foos, como o exagero da auto-confiança narcisística e egocêntrica de Talese. Quando esses dois grandes defeitos se chocam, a bomba atômica é lançada numa sequência de desastres que afeta a todos de uma só vez.

Mas o documentário não passa disso. Ele raramente entra em pormenores sobre o que de fato é interessante ao espectador, que são as observações de Foos. A conclusão que ele tirou depois de anos como um voyeur ativo, ou os motivos de ter vendido a propriedade na década de 90, nada disso parece ser relevante. Foos não é tratado com humanidade, apenas como um objeto que observa objetos. A produção se atenta apenas em mostrar quem é o voyeur e quem é o jornalista, ambos em um duelo de quem é que fala mais a verdade, criando até momentos interessantes de dúvida, já que Foos é a fonte de informação dele mesmo. E como diz Talese em um momento: para um jornalista, uma única fonte de informação sempre é perigoso demais.

Pode ser que Foos aumente um ponto aqui e invente uma coisa alí porque toda a história é baseada apenas naquilo que ele mesmo documentou, mas não é possível acreditar que tudo seja uma ficção criada por ele mesmo, até mesmo porque o motel realmente existiu, Gay Talese o conheceu e confirmou a existência não apenas das estruturas e adaptações construídas pelo próprio Foos, como também os blocos de anotações detalhadas dos hóspedes e das observações feitas. O documentário ignora insistentemente que a mulher de Foos também é uma fonte, já que ela tinha conhecimento de tudo e participava ativamente do dia a dia do marido no motel e de sua rotina de observação.

É um documentário bem raso perto da profundidade do assunto que ele aborda. Não há relações tangíveis do voyeurismo com a nossa realidade para que a situação se torne mais próxima e compreensível, não há uma explicação clara do que é ser voyeur e o impacto que este comportamento gera na sociedade, elementos que seriam cruciais para a construção da base narrativa do documentário. Na verdade, a real intenção dele é de promover tardiamente o livro The Voyeur's Motel (2016), cujas razões ficarão bastante evidentes na reta final do documentário que a todo momento abstém-se de dar maiores detalhes sobre todos os fatos descritos por Talese para que o espectador sinta-se influenciado a ir atrás da fonte bibliográfica, tanto que por vários momentos é possível notar um corte brusco na edição em situações onde as informações começam a ficar mais interessantes e consistentes.

Claro que a produto final não deixa de mostrar até que ponto a obsessão de uma pessoa pode chegar, mesmo que isso não traga consequências negativas de nenhum tipo a nenhuma pessoa, como foi o caso de Gerald Foos. Mas se Foos realmente era um cientista amador ou não, não temos como julgar. E por mais maluca que a idéia possa parecer, não deixa de ser interessante e igualmente intrigante.

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