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terça-feira, 20 de junho de 2017

HÁ HANNAH BAKER EM TODO LUGAR...

★★★★★★★☆☆☆
Título: Por 13 Razões (13 Reasons Why)
Ano: 2017
Gênero: Drama
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Katherine Langford, Dylan Minnette, Alisa Boe, Christian Navarro, Brandon Flynn, Justin Prentice, Miles Heizer, Kate Walsh
País: Estados Unidos
Duração: 60 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Um jovem se mobiliza a descobrir a história por trás do suicídio de sua colega pela qual era apaixonado, e os motivos que a levaram a isso.

O QUE TENHO A DIZER...
Tal qual Brás Cubas, porém obviamente sem o mesmo sarcasmo e a mesma profundidade realista/impressionista de Machado de Assis, a série, baseada no livro homônimo de de Jay Asher, é postumamente - e parcialmente - narrada pela protagonista da história, que se suicidou depois de uma sequência de eventos desmoralizantes nos seus últimos anos no Ensino Médio. E isso soaria um spoiler caso nada disso fosse revelado logo no primeiro capítulo. 

O que nota-se desde o princípio é que a história de Hannah Baker tem embutida críticas comportamentais da cultura adolescente e à mentalidade coletiva, e flertam nos relato bastante descritivos, porém incertos, plantando a dúvida de sua veracidade tanto nos personagens, quanto no espectador, tudo para o bem da narrativa e de um suspense empurrado mais pelo atraso das revelações, do que pelos fatos em si, daí a interminável sensação de que cada episódio tem o dobro de sua duração.

Os episódios se desenvolvem e se aprofundam nos motivos, razões e circunstâncias de Hannah (Katherine Langford) chegar à conclusão que se matar seria a solução de seu futuro nebuloso, e o ponto de partida da trama é quando Clay Jensen (Dylan Minnette) recebe uma cópia de cassetes com gravações feitas por ela mesma, relatando os pormenores que levaram à sua decisão suicida. Clay se impõe como um agente revelador, aquele que irá confrontar e ao mesmo tempo se sensibilizar com os constantes infortúnios da anti-heroína da história. Ao mesmo tempo, ele também se transforma em um objeto visado por aqueles que passam a se incomodar com suas atitudes, já que quanto mais fundo ele chega nas suas investigações pessoais para descobrir até que ponto os relatos são verdadeiros, mais ele é oprimido pelos demais igualmente envolvidos, pois como ele mesmo chega a dizer: as pessoas não conseguem lidar com a verdade.

Cada episódio é referente a um lado das sete fitas numeradas recebidas por Clay alguns dias depois de Hannah cometer suicídio, em uma corrente que segue a sequência das pessoas citadas por ela nas gravações, numa ordem pessoal de importância e gravidade. Caberá a Clay dar ou não continuidade a essa corrente pois, mesmo morta, Hannah deixa de ser uma assediada para se tornar a assediadora, ameaçando revelar as fitas publicamente através de uma pessoa de sua confiança caso determinadas tarefas exigidas não sejam cumpridas.

Apesar de toda essa situação superficialmente parecer, aos olhos do espectador, uma mórbida vingança ou uma simples maneira da protagonista chamar a atenção, a proposta do autor, assim como do roteiro de Brian Yorker, é criar uma situação onde houvesse possibilidades para hiperbolizar uma das maiores preocupações da sociedade jovem norteamericana, e que tem se difundido em outras culturas nas últimas décadas como um câncer: o assédio (bullying). Uma maneira desesperada e ofensiva de chamar a atenção sobre o tema, criticando esse comportamento abusivo que ocorre em todas as camadas sociais, abrindo os olhos da sociedade à atitudes que perpetuam esses crimes ocultos, que arrastam e disseminam a crueldade de maneira lenta e soturna, criando uma cultura dominante do medo, onde quem rege as regras são os assediadores, os quais gradulamente enfraquecem e vulnerabilizam outros por motivos vazios e egoístas. Um tema recorrente também no cinema, seja em comédias como Romy & Michele (1997) e O Casamento de Muriel (1994), em dramas como Bem-Vindo À Casa de Bonecas (1997) e As Vantagens de Ser Invisível (2012), ou até mesmo no recente documentário Audrie & Daisy (2016), para citar alguns exemplos.

Apesar da densidade do tema, os episódios tentam não ser carregados com o mesmo peso. Há uma série de vastos elementos narrativos que dão valor a uma construção lenta e não muito sensacionalista, não chegando a ser convincente como deveria justamente por vagar por diversos gêneros além do drama propriamente dito. Principalmente porque a grande manivela de tudo, que é a engasgada e mal comunicada relação entre Hannah e Clay, ser condensada de um romantismo até piegas no proposital intuito de aliviar o peso da tragédia quase grega da personagem.

E isso não é de todo ruim, porque não se pode esquecer que o público jovem é o alvo principal, e mesmo não tendo sido uma série feita unicamente para ele, o apelo é evidente a todo momento, seja na excelente e constante trilha sonora pop; nos diálogos forçadamente "engraçadinhos", com aquela típica sagacidade rasa adolescente do gênero; ou na considerável (e importante) tentativa de mostrar como o comportamento jovem atualmente tem se tornado mais adulto, numa implícita crítica de como a sociedade tem transferido cada vez mais responsabilidades às crianças e adolescentes, se esquecendo que há um caminho natural a ser seguido para a maturidade e formação da moral, sendo a falta deles os maiores agentes motivadores das relações abusivas que observamos na série e também na realidade.

Outras temáticas recorrentes dessa fase da vida também entram e saem dos episódios como molho de macarronada para dar continuidade àquele rendimento barato no conteúdo, como na forçada nostalgia romântica contemporânea de valorizar objetos não mais valorizados, como K7's e jaquetas jeans. Mas o elemento interessante de tudo é que, na mesma medida que toda a série possa soar exageradamente forçada ao tentar reproduzir o comportamento adolescente usando e abusando de clichés e estereótipos, são nos momentos onde o roteiro é sério que ele consegue ser genuinamente emotivo e verdadeiro. Momentos nos quais os temas relevantes se destacam e todos os excessos narrativos são esquecidos.

Mesmo uma obra de ficção repleta de exageros cênicos e diálogos sempre inconclusivos para prorrogar a solução das tramas e criar uma falsa sensação de apreensão, sendo bastante irritante a frequência com que personagens repentinamente saem de cena toda vez que são questionados sobre algo, ou da mãe controladora que sempre surge no pé da escada só para surpreender o filho de maneira inesperada, ou do pai que está sempre à mesa com um jornal ou um talher na mão, a produção acerta em cheio quando aborda assuntos com consistência verídica, deixando de lado o creme de leite e focando na estrela do prato: a cultura jovem carente da presença familiar, da informação e compreensão, pressionada a decisões sem qualquer estrutura, pulando fases e etapas importantes, sofrendo com antecedência de problemas comuns da sociedade moderna que vitimizam pessoas cada vez mais jovens, como a depressão, a intolerância, o estresse, abuso de drogas e desvirtuação de valores.

Hannah é a representação de uma boa parte disso, além de também representar centenas de milhares de pessoas espalhadas pelo mundo que já foram vítimas de assédio moral, psicológico e/ou sexual, sejam eles real ou virtual, das quais muitas cometeram suicídio por consequência disso, tamanho o sentimento de vazio e impotência que domina.

A protagonista não tem a intenção de responsabilizar as pessoas pelo seu suicídio, mas de fazê-los compreender como suas atitudes e comportamentos são nocivos uns aos outros, e como a falta de maturidade e o distanciamento cada vez maior da sociedade os pressionam a ignorar suas responsabilidades uns com os outros, agindo muitas vezes por benefícios próprios e egoístas, como quando uma das colegas de Hannah atropela completamente sua relação de amizade ao inventar uma grande mentira para que sua própria verdade não fosse revelada, empurrando Hannah na linha de frente da desmoralização. Algo recorrente entre as pessoas que circundam a pesada atmosfera na qual a protagonista vive.

O assediador só se sente vitorioso quando sua vítima é desmoralizada, e a maneira como Hannah expõe seus frequentes traumas como razões para seu próprio suicídio pode parecer cruel, mas julgá-la dessa forma é, ao mesmo tempo, ignorar seu sofrimento e ser complacente às atitudes de seus assediadores. Esse tipo de julgamento é o que constantemente recebe aqueles que já passaram por situações semelhantes e encontraram no suicídio - ou outras alternativas drásticas - a única maneira de se sentirem livres de um pesadelo que parece não ter fim. Pessoas que não souberam como se defender, ou a quem recorrer ou procurar ajuda.

O suicídio e o pensamento suicida, apesar de uma decisão pessoal, é de uma complexidade psicológica que envolve diversos fatores. Muita dessa complexidade agravada por fatores externos e sociais. Ninguém pode ser culpado pelo ato do suicídio além do próprio suicida, mas o que Hannah pretende com seus áudios é aproximar os demais à sensação de impotência na qual todos a condicionaram e que ninguém, além deles mesmos, são os responsáveis por seus próprios erros. Ela revela a todos os motivos para seu suicídio, mas a ela nunca foram revelados os motivos por ter sido tratada com diferença.

Isso não significa que Hannah seja isenta de erros. Ao longo dos episódios há uma construção martirizadora da personagem, mas aos poucos o roteiro também revela seus defeitos, como ela mesma relata ao se culpar por um determinado acontecimento que ela podia ter evitado.

Ao mesmo tempo que Hannah procura ajuda, ela a repele, negligencia aproximações e sabota suas próprias decisões, assim como também direciona propositalmente a última pessoa de sua lista (e a última das fitas) ao erro, para dar a si mesma uma justificativa à sua decisão fatal e, assim, poder culpar diretamente alguém. Assim como dito no último episódio, não existe o que salve um suicida além dele mesmo, mas não é por isso que os trágicos acontecimentos deixam de ter suas suas parcelas de agravamento da situação.

Claro que, volto a dizer, em algumas situações as motivações parecem vagas, como que apenas para incrementar a história e completar o cronograma de episódios, além da falta de uma caracterização da personagem que caminhasse de maneira mais coerente com a crescente desmoralização e depressão na qual se afunda. Fica um pouco difícil aceitar que uma garota prestes a cometer suicídio esteja bem vestida e maquiada, ao invés de pálida, com olheiras profundas, indiferente a qualquer vaidade, sinais comuns de quem se encontra nessas condições, como acontece de maneira muito mais convincente com outros personagens, como Jessica, Alex, Justin e até mesmo Clay. Mas em outras situações, como nos momentos de objetificação da personagem, da vulgarização de imagens, da violação, da já citada ausência de responsabilidade nas relações que criamos, até mesmo quando ela presencia um estupro ou quando ela mesma é violentada, é que conseguimos chegar um pouco mais próximos da incompreensão que a protagonista aos poucos vivencia. As gravações acabam engatilhando um efeito dominó que toma proporções insustentáveis, e quanto mais os envolvidos tentam esconder, mais grave o teor dos fatos se torna, e outras situações de assédio se desencadeiam, revelando a verdadeira personalidade de cada um e o respectivo autoconhecimento.

Independente de quais sejam os motivos, não cabe a nenhuma pessoa julgar a dor e o sofrimento do outro. O comportamento de Hannah pode parecer inadequado, mas apenas dessa forma para, dentro da ficção, a discussão sobre o tema se tornar válida e real. Acima de tudo, fazê-la de maneira relevante, expondo um assunto que a sociedade insiste em ignorar por pura conveniência, pois não quer aceitar o fato de que a base familiar tem se deteriorado com o passar dos anos, e quanto mais precoce for a educaçao e conscientização sobre o tema, mais próximos os jovens estarão das comunidades aos quais estão inseridos, e melhor preparados estarão para evitar a repetição e reprodução desses abusos no futuro, pois o tema é igualmente real na sociedade adulta nos diferentes ambientes sociais e profissionais.

Infelizmente a série foi vulgarmente associada ao hoax da Baleia Azul, naquela velha e sistemática situação de se confundir a ficção com a realidade, tanto que a Netflix de sentiu obrigada a incluir uma mensagem de aviso e esclarecimento de conteúdo à audiência em todos os episódios da série para satisfazer os conservadores, fortalecendo a ausência dos mesmos na participação familiar, isentando a sí próprios da responsabilidade à informação e ao controle do acesso, algo que cabe muito mais a eles do que ao veículo de transmissão. Uma contradição explícita à proposta principal da série: transformar o material em oportunidade de abertura ao diálogo e ao debate sobre o assunto.

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