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segunda-feira, 13 de março de 2017

DOCE E AMARGO...

★★★★★★★☆☆☆
Título: Um Limite Entre Nós (Fences)
Ano: 2016
Gênero: Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Denzel Washington
Elenco: Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russell Hornsby
País: Estados Unidos
Duração: 139 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Um pai tenta manter sua família nos anos 50 enquanto toma decisões que impactarão no futuro e ainda lida com problemas de decisões tomadas no passado.

O QUE TENHO A DIZER...
Denzel Washington dirige e atua neste filme que é uma adaptação da peça homônima de August Wilson, o qual também escreveu o roteiro e veio a falecer pouco tempo depois de completá-lo, em 2005.

Mesmo que alguém o assista sem ter a informação de ser baseado em uma peça, a sensação de adaptação é bastante nítida pela forma como Washington desenvolve a história sem muitas variações de cenário, em um roteiro embasado unicamente em diálogos e poucas ações. A cena inicial já deixa clara essa proposta de ser como uma peça filmada, uma parte considerável de um cotidiano comum e repetitivo, como o protagonista por muitas vezes esclarece. Os 15 minutos iniciais resumem muito aquilo que o filme será, onde o protagonista engaja em um monólogo até cansativo e irritante, permanente até mesmo quando o cenário muda, mas elucidador no sentido das variáveis discussões e dificuldades sociais e familiares vivenciadas desde a infância.

Por mais que Washigton tente driblar os longos diálogos tanto na direção, quanto em sua atuação, a necessidade de um intervalo, ou uma quebra da situação é sentida quando esse excesso toma conta. Esses momentos podem parecer grandes defeitos, mas quando analisados com mais profundidade, são importantes em todo o contexto porque o roteiro não quer desperdiçar tempo, e também quer sempre dar uma progressiva oportunidade de mostrar como o protagonista sofre de um pedantismo incurável, oras depreciativo, oras de exagerado egoísmo e auto-suficiência.

De qualquer forma, é admirável a maneira que o filme, como um todo, é conduzido sem causar aquela sensação monótona que costuma ser em títulos que tentam não apenas se manterem fiéis a uma peça, mas também em sua estrutura narrativa original. A construção é presente e intimista, que se torna cada vez mais distante e desconfortável na medida que a verdadeira personalidade e natureza de cada um se aflora em seus determinados conflitos.

Troy (Denzel Washington) é um lixeiro indignado que se apresenta no filme como um velho contador de histórias, preenchendo suas poucas horas de folga bebendo com seu único amigo e parceiro de trabalho, e contando episódios de sua vida de sacrifícios e desgostos como anedotas particulares. Embora seus relatos sejam embutidos de certo humor e fantasia, ele assim o faz para conseguir superar mágoas e rancores que nunca se vão. É dessa forma como ele também destila sua ríspidez, seu machismo e sua conservadora educação patriarcal em cima das pessoas que ele mais ama, as únicas que fizeram sua vida ter sentido e função nos últimos 18 anos.

Aos poucos, nos sentimos envolvidos na família de Troy, curiosos sobre eles como se fôssemos vizinhos, interessados em suas vidas e segredos. Ele é um personagem que não esconde sua complexidade resultante de uma longa vida de frustrações sociais, familiares e profissionais, e isso é o que dá abertura para o roteiro abordar diversos temas que fizeram parte do cotidiano de sua vida, mas também fazem parte do cotidiano da sociedade como um todo até os dias de hoje.

A história se passa nos anos 50, mas quando o protagonista entra em cena é como se voltássemos ao fim do século XIX e revivêssemos sua adolescência talhada de sonhos e vontades, ao mesmo tempo como tudo ainda soa bastante familiar e atual. E no decorrer da história, aquele personagem que se apresentou amigável e irreverente, gradualmente se transforma em uma pessoa profundamente angustiada e egoísta, que não sabe mais a diferença entre pessoas e posses, sentimentos e obrigações. Seu egoísmo não é deliberado, mas resultado de sacrifícios e difíceis decisões, de oportunidades que não surgiram como escolha, mas como única opção, abraçadas e agarradas com todas as forças, e que para ele não podem ser dadas ou abdicadas a outros a não ser que sejam conquistadas da mesma forma. Então, apesar de toda essa antipatia que ele possa causar, ainda sim conseguimos nos sensibilizar pela maneira bastante simplista como ele define ou compara as coisas em sua vida, tudo baseado em uma vivência de poucas - porém relevantes - experiências.

Sim, há embutida fortes discussões raciais, principalmente porque boa parte da vida do protagonista ainda se passa em uma era de recente pós escravismo, onde a segregação racial nos Estados Unidos atingia níveis de quase guerra civil. Tanto que o filme começa com ele questionando a razão dos negros sempre serem contratados para realizar o trabalho pesado, como catar o lixo, mas nunca para trabalhos mais neutros, como dirigir caminhões; ou também na maneira rigorosa como ele cria seus filhos na cultura de que o negro não tem tempo para sonhos ou oportunidades sobre coisas ou assuntos "que são de brancos".

Por mais desprezível e antipática que é a maneira como a personalidade de Troy emerge ao longo do filme, se torna função de Rose (Viola Davis) nos mostrar o contrário. Viola não é apenas uma coadjuvante no filme, como sua indicação ao Oscar rotulou, ao contrário disso, sua personagem é tão principal quanto o protagonista - se não for até mais importante que a dele - pois será ela a responsável por nos dar o alento que Troy não consegue, sendo o exemplo da tolerância, o redimindo das coisas que ele é incapaz de se redimir aos olhos do espectador. Uma antagonista por excelência, enquanto Troy nos oferece as questões, Rose as responde de diversas e sensatas maneiras.

Sensatas, com certeza. Da mesma forma que não há um momento de redenção de Troy (a não ser de forma indireta na reta final), a personagem de Viola em nenhum momento se inferioriza ou se autovitimiza. Até mesmo no seu ápice dramático, quando revela ter depositado em seu marido 18 anos de sua vida, mas o fez por uma igual necessidade, tanto pessoal, quanto para a manutenção das bases familiares.

O filme perde um pouco da sua sutileza a partir de sua metade, quando uma inesperada e até chocante reviravolta acontece, não evitando clichés dramáticos e exagerados, extraindo de Viola Davis todas as lágrimas possíveis para obrigar o espectador a se identificar com suas dores e angústias. Bette Davis dizia que Joan Crawford era boa em gritar demais, e sempre faço uma alusão a isso todas as vezes que vejo Viola em cenas dramáticas, pois ela não apenas é boa em chorar, mas também em chorar demais. Não deixam de ser momentos de genuíno sofrimento, mas por vezes apelativos para apenas uma câmera. Não é um drama tenro e familiar como parece, pelo contrário, é um lado bastante entristecedor e obscuro de uma relação construída apenas em necessidades e obrigações ditadas por um período social, mantida a restritas liberdades nas suas mais variadas formas.

É um soco no estômago para quem o assiste, e se aproxima bastante de Moonlight, seu concorrente direto no Oscar 2017, por igualmente abordar diversos temas dentro de uma única narrativa, seguindo a mesma premissa de que somos o resultado daquilo que vivemos. Mesmo não tendo uma construção tão bela quanto o filme de Barry Jenkins, Washington consegue fazer de seu terceiro filme um excelente material questionador sobre aquilo que nos define em sua mais sagrada essência.

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