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sábado, 18 de fevereiro de 2017

POR TRÁS DE TODO JOHN, HÁ UMA JACKIE...

★★★★★★★★☆☆
Título: Jackie
Ano: 2016
Gênero: Drama, Biografia
Classificação: 14 anos
Direção: Pablo Larraín
Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig, Billy Crudup
País: Chile, França, Estados Unidos
Duração: 100 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A morte de JFK sobre o ponto de vista de Jacqueline Kennedy nos quatro dias que sucederam a morte de seu marido.

O QUE TENHO A DIZER...
Após alguns segundos do início do filme, Jacqueline Kennedy (Natalie Portman) aguarda a chegada de um jornalista, interpretado por Billy Crudup. Este personagem é o único que não leva um nome, mas sabe-se que é uma referência direta a Theodore H. White, o único e premiado jornalista ao qual ela aceitou conceder entrevista uma semana após a morte de John Kennedy, em um encontro que durou mais de oito horas e resultou na publicação de apenas duas páginas da revista Life.

A história do filme focará nos quatro dias que sucederam a morte de JFK, desde o fatídico momento em que leva o primeiro dos dois tiros que o matou, até o espetaculoso funeral de proporções só vistas décadas depois, com a morte de Diana. Tudo isso recriado nos mínimos detalhes, tal qual conhecemos através dos arquivos audiovisuais da época que se solidificaram na memória histórica, os quais também são utilizados no filme, misturados de maneira imperceptível em meio às cenas reconstituídas, num competente trabalho realizado pelo diretor chileno Pablo Larrín.

Entre o início do fim da era de Camelot e o seu fim propriamente dito, o filme tentará recriar, de maneiras ora fictícias, porém relevantes, o ponto de vista de Jacqueline Kennedy sobre toda a situação. Muito já se falou ou se mostrou a respeito de John Kennedy e sua morte, como Oliver Stone fez em JFK (1991), mas nenhum filme ou mini-série pareceu se preocupar além do superficial sobre o que teria acontecido a Jacqueline durante aqueles dias, ou como é que ela conseguiu administrar tantas responsabilidades de uma única vez em um espaço de tempo quase inexistente para lidar com a própria dor de uma situação tão traumatizante pela qual passou.

Usando um Chanel pink e um chapéu pillbox, a icônica imagem de Jacqueline suja de sangue é de uma dramaticidade chocante até os dias de hoje. Mas é de conhecimento público que foi uma decisão dela manter-se com a mesma roupa para que as pessoas pudessem ver o que "eles" haviam feito, posteriormente até arrependendo-se de ter lavado seu rosto e suas mãos sujas de sangue, já que poderia ter sido mais enfática nessa mensagem. Mas mais do que isso, no momento em que Natalie Portman se despe frente às câmeras, a cena passa uma sensação metafórica simples, mas de total coerência e que, talvez, ninguém nunca tenha levado em consideração antes: sobre o peso que aquelas roupas deveriam ter no fim daquele dia. A cena se torna uma lembrança viceral do que Jacqueline teve de suportar.

Jackie fez questão de lidar pessoalmente com as decisões sobre o funeral, resolvendo fazê-lo aos moldes do de Abraham Lincoln para que o legado de Kennedy fosse igualmente registrado na História como uma era interrompida. Sem ter onde morar assim que deixasse a Casa Branca, ou emprego para cuidar de seus dois filhos, seu futuro era indefinido. Enquanto isso, presenciava durante o vôo de Dallas a Washington o futuro do vice Lyndon Johnson, que em uma completa insensibilidade política foi nomeado Presidente algumas horas depois da tragédia. Jackie recusou-se a fazer parte do juramento de posse ocorrido dentro do avião, um momento igualmente registrado no filme, e que ergue a questão de uma provável relação conflituosa entre eles e que até hoje é publicamente desmentida.

A imagem que temos da ex-Primeira Dama norteamericana é martirizadora, a da clássica viúva de preto com seus dois filhos recém órfãos de pai, um em cada lado, tal qual ela publicamente se obrigou a mostrar numa imagem difícil de ser esquecida no momento que sai para acompanhar o caixão rumo ao Capitólio. Mas será que aquela imagem era realmente aquilo que parecia ser, ou era aquilo que queríamos ver? E é dessa forma como o roteiro de Noah Oppenheim constrói a história sobre a História, colocando a dúvida em todos os momentos chaves daqueles quatro dias, tentando desmistificar registros visuais sólidos captados pela incansável imprensa, e dar um motivo muito mais pessoal e complexo do que parecia.

A semelhança de Natalie Portman, e o sucesso de sua caracterização, não se dá somente pela maquiagem e cabelo, mas pela construção física detalhada na qual se submeteu. A maneira de andar e gesticular chegam a ser inquestionáveis quando comparados com a verdadeira Kennedy. Mas o mais impressionante foi conseguir mimetizar o tom e a forma vocal de Jackie, algo que, segundo o produtor Darren Aronofsky, o qual a dirigiu em Cisne Negro (2010), era crucial para a veracidade do filme. Portman descreveu a personalidade vocal de Jacqueline como tendo uma dialética muito própria e de perfeita dicção, num sotaque particular entre o novaiorquino e britânico, além da pronunciação sussurante, sua característica mais marcante. Com a ajuda de um treinador, a atriz estudou exaustivamente a maneira de Jacqueline falar, até atingir uma similaridade próxima e convincente, sem soar forçada ou simplesmente imitada.

E consegue.

Há momentos em que a fala da atriz/personagem se torna um pouco mais estridente ou caricata, algo que, a princípio, pode soar exagerado, ou que a atriz tenha saído "um pouco do tom", principalmente nos momentos em que recriam trechos do documentário feito por Jacqueline na Casa Branca. Mas isso acontece devido a uma sensata observação da própria atriz, que notou durante suas pesquisas que Jacqueline possuia duas personas: a pública e a privada. Quando pública, ela tendia a entonar mais sua voz para soar mais "girlish", ou seja, mais alegre, charmosa, simpática, e um tanto superficial como deveria soar uma "mulher perfeita". Já na sua vida privada sua voz era contida e mais grave.

Essas duas personas de Jacqueline foram cruciais para que conseguisse separar sua vida privada daquilo que era acessível ao povo. Seu comportamento público era feito para a mídia, e isso era um atributo não apenas dela, mas também de John, e ambos se comportavam da maneira como as pessoas gostariam de vê-los: ela, como um exemplo de mulher a ser seguido, e ele, como um perfeito homem público.

A Jacqueline pública estava exposta e aberta para qualquer tipo de abordagem, a figura decorativa criada pela Casa Branca e pela expectativa dos olhos do povo. Sobre essa persona podiam falar o que quisessem, pois a Jacqueline privada, a mulher de John e mãe de dois filhos, esta ninguém conhecia. Foi uma maneira inteligente de fazer com que críticas, maldizeres e boatos, não a atingisse. Nada de fora afetava diretamente sua vida privada porque isso era responsabilidade da sua persona pública, deixada para fora a partir do momento que fechava as portas. E para auxilia-la em tudo isso, contratou sua amiga de infância, Nancy Tuckerman (interpretada no filme por Greta Gerwig), como acessora pública, um cargo que não existia na época para uma Primeira Dama.

Jacqueline foi atribuida ao cenário político como uma alegoria, um meio de desviar as atenções da frágil situação política que o país enfrentava tanto externamente (com a Guerra Fria), quanto internamente (com o crescimento dos movimentos sociais). Mas ao mesmo tempo tinha uma real intenção de reacender uma esperança nacionalista perdida, através de uma abordagem diferenciada, mais cultural e menos política. Ela sustentou essa imagem, como dito, para o bem do povo e para o bem da imagem de John Kennedy quando o descontentamento da opinião pública começou a crescer. Investiu grande parte do tesouro nacional em uma fundamental restauração da Casa Branca, promovendo a idéia de que, além de uma casa presidencial, era também uma casa do povo e de sua memória, como que abraçar os cidadãos sob as asas de uma grande mãe. Há até um momento no filme em que Jackie diz não entender porque John gastava milhões em uma campanha, mas considerava desperdício gastar com uma obra de arte, como a querer dizer que é impossível desvincular a imagem de um patrimônio. Quanto mais valorizado um, mais será o outro.

Para evitar os boatos de que Jacqueline esbajava o tesouro nacional para motivos pessoais, Nancy incentivou a idéia de promover uma grande visita à Casa Branca, utilizando a televisão como meio de atingir a população e mostrar ao povo que o dinheiro estava sendo investido para manter a memória e a cultura norte-americana. O trabalho resultou no especial da CBS entitulado A Tour Of The White House With Mrs. John F. Kennedy, um documentário apresentado no horário nobre em Fevereiro de 1962, e que Lorrain utiliza em diversos momentos entre cenas reais e reconstituídas.

Todos esses pequenos episódios são mostrados no filme e, mesmo que de forma breve, conseguem ser consistentes, pois preenchem buracos de tal forma a esclarecer que Jacqueline era muito mais do que a imagem explorada de boneca condecorada. Uma produção caprichada, bastante condensada em seus 100 minutos, evitando cair em assuntos que demandassem muitas explicações, por isso um ponto de vista muito objetivo como um relato, não sendo à toa que o ponto de partida é a entrevista que Jacqueline concede. E os pontos fictícios da história, ao invés de serem momentos de futilidade criativa - desses que costumam transformar filmes biográficos em cansativos melodramas para adular uma figura pública - se embasam em questionamentos contraditórios que justamente fazem o oposto: a transformam em uma pessoa mais humana, longe da perfeição que fascina o imaginário comum, muito mais conservadora, perfeccionista e controladora do que se imaginava.

Se ela era uma pessoa realmente preocupada com o legado de seu marido e de uma pátria, ou se seu comportamento era movido por intenções puramente narcisitas, são igualmente dúvidas que o longa constrói do início ao fim, mas que, independente de qual tenha sido a real importância de Jacqueline Kennedy, a conclusão é que ela conseguiu realizar os dois feitos em igual medida.

Mas não é um filme biográfico comum, já que ele não se aprofunda em fatos ou em sua história pessoal antes do assassinato de JFK. Como bem dito por um crítico, ele parece mais um spin-off sobre qualquer filme que fale da tragédia do que uma biografia propriamente dita. Isso não o reduz, pelo contrário, fortifica a imagem de Jacqueline muito mais do que teria feito caso houvesse uma narrativa comum como qualquer outra cinebiografia. Até porque, como a personagem diz no próprio filme ao entrevistador, todo mundo está interessado em saber como foi o barulho da bala ao atravessar o crânio de John Kennedy. E lá está ela para contar.

CONCLUSÃO...
O ponto de vista é claro: houve uma grande importancia de Jacqueline Kennedy no cenário político norteamericano, e para uma mulher que era tida pela opinião pública como uma pessoa frágil e um tanto superficial, ela demonstrou ter dentro de si uma força inquestionável de determinação responsável não apenas por superar uma tragédia, mas também fazer dela uma memória histórica viva, dando um sentido a uma época de incertezas.

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