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domingo, 4 de dezembro de 2016

NEM SEMPRE TEMOS CONSERTO...

★★★★★★★★★☆
Título: Krisha
Ano: 2015
Gênero: Drama, Suspense
Classificação: 14 anos
Direção: Trey Edward Shults
Elenco: Krisha Fairchild, Robyn Fairchild, Alex Dobrenko
País: Estados Unidos
Duração: 83 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Depois de 10 anos sem encontrar com sua família, Krisha volta a reencontrá-los no Dia de Ação de Graças, mas seu passado e traumas pessoais poderão arruinar as festividades.

O QUE TENHO A DIZER...
Com tantas qualidades e particularidades, Krisha é de longe um dos melhores filmes lançados esse ano. Produzido em 2015, só foi ter seu lançamento mundial no festival South By Southwest, em Austin/TX. Também foi apresentado internacionalmente em Cannes, o que levou o diretor a concorrer a dois prêmios: ao Câmera de Ouro e ao Grande Prêmio da Semana pela Crítica, ambos relacionados à melhor estréia de um diretor.

Dirigido, escrito, produzido, editado e brevemente atuado pelo norteamericano Trey Edward Shults, o longa veio de um processo criativo comum entre diretores estreantes, independentes e autorais, nascendo a partir de um curta metragem de mesmo nome produzido por ele em 2014. Além do fato do elenco ser praticamente o mesmo, as maiores curiosidades sobre o longa é que todos os atores envolvidos são familiares e amigos (por isso os nomes são os mesmos da vida real): quem interpreta a protagonista é sua tia (Krisha Fairchild), quem faz a irmã da protagonista é sua mãe (Robyn Fairchild) e a mãe da protagonista é sua avó (Billie Fairchild). Os demais são amigos pessoais, e apenas dois atores sem qualquer relação com o diretor foram contratados. As filmagens ocorreram na casa de seus pais, e durou apenas nove dias, com orçamento arrecadado pelo Kickstarter, uma fundação online de levantamento de fundos para desenvolvimento de projetos.

É importante conhecer essa história por trás das câmeras porque é ela quem complementa a atmosfera extremamente intimista que o filme proporciona, cuja interação entre os personagens e a naturalidade com que se desenvolvem frente às câmeras chegue a um nível de realismo sufocante, inclusive pela limitação dos cenários, que agregam mais ainda uns aos outros em um caos organizado e conflitante. Também é a prova daquilo que sempre repito por aqui, de que grandes produções não necessitam de grandes orçamentos, apenas de grandes idéias e sólida concepção.

O filme começa focado em Krisha, com um ruído sonoro ao fundo que cresce em sincronia com os sentimentos perturbadores que se afloram. A fisionomia carregada da protagonista surpreende, e a partir daí sabemos que algo de errado acontece com ela, até tudo ser abruptamente interrompido. Em seguida ela chega em um bairro, e em um grande plano sequência vemos ela caminhar de casa em casa, blasfemando arrependida por estar lá, tensa e apreensiva pela receptividade que poderá ter de familiares que reencontrará depois de 10 anos de ausência para juntos comemorarem o Dia de Ação de Graças.

A complexidade de Krisha não é fácil de ser descrita, já que a todo momento é construída e desconstruída por Shults como um quebra-cabeças. Tragicamente ela consegue ser a protagonista e a antagonista de sua própria história, um tipo único que muito raramente vemos no cinema. O excesso de planos sequência e a vagarosidade com que as cenas são conduzidas é angustiante, de um suspense e apreensão nada saudáveis, como no momento em que é acompanhada andando em círculos pela cozinha, em uma insanidade dispersa, com o mesmo ruído sonoro crescente do início do filme. O comportamento distímico de Krisha chega a ser, por vezes, assustador como um filme de horror: é comedida em meio aos familiares, se esforçando para se manter em um padrão de normalidade que eles esperam, mas por trás das paredes está sempre à espreita, alimentando sua insegurança e desconfiança pelos outros de maneira ora esquizofrênica, ora psicótica. E assim a história é construída numa progressão desastrosa, e como todo o processo é muito explícito, acaba sendo previsível, mas um tipo de previsibilidade diferente, que nos prepara para o pior, a um ápice dramático denso e que desmancha como uma pedra de gelo em uma frigideira.

Não há como dexiar de relacionar o filme a dramas familiares europeus como o sueco/dinamarquês Festa de Família (Festen, 1998), ou até mesmo na construção volátil do norteamericano O Casamento de Raquel (Rachel Getting Married, 2008), e em nenhum filme o símbolo maior do Dia de Ação de Graças foi tão bem utilizado para demonstrar que um pequeno acidente pode ser a gota d'agua de uma situação insustentável, o estopim da desgraça, a total antítese de sua simbologia, como acontece aqui.

Shults nunca nos revela pequenas coisas que nos deixam curiosos por todo o filme, ele apenas nos revela o necessário para compreendermos aquele presente e aquele momento. Se o que é revelado já constrói o pior cenário possível, não fica difícil imaginar como foi tudo antes disso e em como o passado pode ter sido tão destrutivo para chegar naquele ponto. Talvez esse flashback imaginário nem seja necessário, pois o fim é certo. Mas acima de tudo, ele também nos dá ferramenta para nos identificarmos com um dos lados, seja em nos sensibilizar com a condição de Krisha (ou até nos identificar com ela), seja em nos solidarizar com sua família e sua persistência para finalmente chegarem ao ponto da completa negação da ajuda.

É filme para poucos, por conta de sua narrativa lenta e meticulosa em sua construção, o que faz os 83 minutos parecerem o dobro. Também difícil, já que, mais que um drama, é um suspense dramático sobre os conflitos da pisiquê humana. Não é à toa que um dos cartazes promocionais do filme remete a uma ilustração de Rorschach, ou seja, a ambiguidade da protagonista, ou a sua tendência em projetar características negativas de sua personalidade aos outros, ou às coisas. Sendo aí que a protagonista brilha, pois Krisha Fairchild sem dúvida tem uma atuação memorável e impressionante, de uma humanidade perturbada excruciante.

Além da narrativa, o filme é tecnicamente belíssimo, desde a já comentada forma do diretor em conduzir muitas das cenas sem cortes e dos planos abertos que dão oportunidade aos atores em explorar o ambiente e interagir abertamente entre si, transformando o expectador em um observador presente, como também na fotografia em enquadramentos sempre muito simétricos e sinestésicos por conta de uma edição simples e pontual: aquilo que se vê, é aquilo que se sente. Sem floreios e sem dispersões, tudo muito objetivo como a visão do espectador.

CONCLUSÃO...
Uma grande estréia de um diretor promissor, e um grande filme com grandes atuações. Uma injustiça o filme estar um tanto esquecido na temporada de premiações, e quando lembrado, apenas o diretor aparece entre os indicados quando não é apenas ele uma das grandes qualidades e revelações do longa. Venceu o Gotham Awards na categoria de Melhor Diretor estreante. Mais que merecido, foi necessário.

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