Translate

terça-feira, 2 de agosto de 2016

MERECE TODOS OS CRÉDITOS...

★★★★★★★★★☆
Título: Stranger Things
Ano: 2016
Gênero: Terror, Fantasia, Mistério, Suspense, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Vários
Elenco: Winona Ryder, David Harbour, Matthew Modine, Finn Wolfhard, Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Natalia Dyer, Charlie Heaton
País: Estados Unidos
Duração: 54 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
O desaparecimento de um garoto leva seu grupo de amigos a investigar seu paradeiro, em paralelo, sua mãe desesperada acredita que ele esteja vivo em algum lugar, enquanto um desacreditado delegado encontra pistas que o motivam a solucionar o mistério, convergendo para um outro ponto chave da história.

O QUE TENHO A DIZER...
O fenômeno em torno de Stranger Things não foi algo previsível. Os comentários em torno do "retorno" de Winona Ryder começaram cedo, já que ela não é protagonista de algo realmente interessante há praticamente uma década. Então, aquilo que parecia ser o marketing principal, acabou se ofuscando no meio de outras coisas muito mais interessantes e que as pessoas deram mais atenção, e isso foi o surpreendente. Não que "o retorno de Winona" seja esquecível, mas esse sensacionalismo se tornou um mero detalhe em um seriado que conseguiu o mérito do sucesso próprio, um produto que já nasceu com qualidades natas, mesmo que estas sejam baseadas em releituras do entretenimento popular.

Confesso que, a princípio, esse súbito sucesso me preocupou, já que a intensa popularização de algo tende a gerar uma superestimação que nem sempre significa qualidade. Evitei ao máximo ler o que quer que fosse enquanto não assistisse os oito episódios justamente para não ficar sugestionado, e felizmente foi assim. A minha nula expectativa sobre ele fez eu ser surpreendido da mesma forma que muitas outras pessoas foram, e que igualmente não tinham idéia do que as aguardavam.

Se você não nasceu nos anos 80 e nada absorveu sobre essa década, nada conhece dela, ou sequer assistiu Os Goonies (The Goonies, 1985), então pode ter certeza que Stranger Things pode até parecer legal, mas grande parte da experiência imersiva é perdida porque é uma produção inteiramente nostálgica, recheada de referências a cult classics da época em que Xuxa era da Rede Manchete, SBT ainda era TVS e tudo que era industrial tinha muita gordura saturada, e por isso que a maionese era muito mais gostosa.

Então, nunca é tarde para correr atrás do prejuízo, pois se tem uma coisa - dentre várias - que o seriado proporciona, é essa centelha de curiosidade que ele desperta, sendo obrigatório dizer mais uma vez (mesmo depois de tanto que foi dito) que os grandes homenageados aqui é o cineasta Steven Spielberg e o escritor Stephen King, grandes ícones dos anos 80 em suas determinadas especialidades, referências vivas até hoje. Portanto, o grande clássico infanto juvenil de Spielberg é o principal trabalho revisitado, assim como Carrie (1974), O Iluminado (1977) e A Incendiária (1984), de King, três livros que, se você também não leu, pouco vai compreender de onde vem essa perfeita sincronia entre o trash classudo e do terror psicológico típicos de sua literatura, reproduzidos com bastante competência aqui, inclusive na forma como os episódios são divididos, entitulados da mesma forma como ele costuma separar os capítulos de suas obras. Por essas e outras que King, pessoalmente, elogiou o seriado, como em agradecimento a esta grande e declarada homenagem.

Dirigido e produzido pelos Duffer Brothers (Matt e Ross), o enredo gira em torno do sumiço de um garoto. Isso levará seus amigos igualmente nerds e excluídos da escola, apaixonados por jogos de RPG, a se aventurarem numa misteriosa investigação que contará com outros personagens caricatos, como uma mãe esquisita que é tida como maluca, um delegado de passado familiar perturbado, e uma estranha garota com poderes telecinéticos que foge de um grande vilão corporativo.

Desde os anos 80, nenhum diretor conseguiu influenciar tanto a cultura pop infanto-juvenil no cinema e o senso de amizade e companheirismo de maneira tão motivadora e agregante como Spielberg fez, seja com Os Goonies, ou E.T. (1982), outra importante referência aqui. Essa fórmula que ele inventou "por acaso" se tornou algo tão autoral como uma marca registrada, fazendo com que qualquer outro diretor que tentasse algo parecido soasse como mera cópia. Não é à toa que o público sempre cobrou Spielberg por continuações desses títulos, algo que sempre recusou por acreditar que quebraria a magia que esses filmes proporcionam. O que é verdade, e louvável. Da mesma forma, King foi responsável por popularizar um gênero literário que estava decadente, mas sua capacidade de fazer importantes analogias com a sociedade e a cultura norteamericana de repente o transformaram em um dos mais influentes autores de sua geração, marcando o terror contemporâneo, popularizado principalmente na cultura jovem sem ser cliché.

É por isso que, nos últimos anos, produções com intenção de resgatar essa assinatura de Spielberg tem sido lançadas, pois a distância dos anos agora oferecesse essa dissociação e possibilidade. Por isso que ele nunca é esquecido como influência primordial, sendo esta a razão de recentes produções serem sempre vistas como grandes homenagens tal como propositalmente aconteceu com Super 8 (2011), de J.J. Abrams, que tem exatamente a mesma premissa inclusive estética, embora falhe em vários aspectos. Há também mais recentes, como o pouco conhecido e subestimado Terra Para Echo (Earth To Echo, 2014), que consegue ser, de longe, juntamente com Poder Sem Limites (Chronicle, 2012), os melhores filmes de fantasia para este público lançados nos últimos anos e que seguem essas mesmas referências clássicas que marcaram os anos 80.

Portanto, Stranger Things não é, em sua grande essência, ou até mesmo na sua intenção de resgate de gênero, uma novidade. A novidade parte na inusitada união da fantasia de Spielberg com o fantástico de King, e como o cinema e a TV careceram por tantos anos de produções como essa, e tão pouco ainda foi feito em cima de idéias assim, que o prazer ao assisti-lo é como o de uma primeira vez.

A nostalgia e o bom uso dela é sentida logo na abertura simplista, de vetores que aos poucos revelam o título, algo muito utilizado nas décadas de 70 e 80 quando computação gráfica era uma precária novidade e se fazia isso manualmente na película, além da trilha sonora original sintetizada, que outrora foi uma novidade na revolução eletrônica, mas até hoje proporciona sonoridades únicas e distintas, responsáveis por amplificar atmosferas fictícias e apreensivas daquilo que é desconhecido.

As referências não param por aí, propositais ou não, estão tão enraizadas na nossa cultura que são facilmente identificadas mesmo assim, e esse é o grande diferencial da produção dos Duffer, pois essa mistura de influências vagam pela cultura pop clássica das mais diferentes maneiras, formas e mídias.

Eles abusam de todos elementos possíveis, seja pela literatura, pelo cinema, pelos quadrinhos e até mesmo video-game e desenhos animados. Os personagens excêntricos de King, como dito, são as referências mais óbvias e diretas, mas existem elementos da ficção científica sombria de Ridley Scott e Alien (1979); ao suspense omissivo e o medo pelo desconhecido de Spielberg em Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977) e Poltergeist (1982); ao horror mais explícito de Wes Craven ou John Carpenter para as horas de susto deliberado como em A Hora do Pesadelo (1984) e Halloween (1978); e também ao terror mais gótico de Sam Raimi em Uma Noite Alucinante (1981), transformando ambientes em personagens vivos e ameaçadores, como as florestas da cidade de Hawkins ou a casa que se comunica e se transforma conforme os eventos. E por que não, até pitadas de Cronemberg em composições de cena e trilha sonora, e Kubrick na estética um tanto simétrica em algumas sequências. Não se pode esquecer da influência de Stan Lee e seus X-Men, que embora sejam heróis atualmente populares, surgiram em 1963 e até mesmo dos garotos perdidos do clássico Caverna do Dragão. Mas, para aqueles da cultura mais recente, o jogo Silent Hill e sua reincidente idéia de dimensões paralelas e o mundo invertido que se materializa também tem sua importância. Ou seja, tem material de sobra para cinéfilos, seriadomaníacos, devoradores literários e tudo aquilo referente à cultura escapista e fantástica.

Para amenizar o peso desses sub-gêneros, há momentos para sátiras juvenis entre os três amigos protagonistas e alguns dramas sociais para dar densidades mais realistas, como a descoberta da sexualidade no triângulo formado entre Nancy (Natalia Dyer), Steve (Joe Keery) e Jonathan (Carlie Heaton); no assédio escolar; nas tensões familiares que se formam, seja entre os Byer ou entre os Wheeler; e tragédias pessoais que resultam em atos de bravura, como bem acontece com o Delegado Hooper (David Harbour) e Joyce (Winona Ryder). Tudo muito bem organizado de forma que não esqueçamos que, acima de tudo, é uma história de pura fantasia como aquelas que assistíamos em seriados como Twilight Zone ou Amazing Stories, este último, por sinal, também produção de Spielberg.

Isso é apenas o pouco que pode ser observado em toda a produção, mas para aqueles que respiram a cultura 70/80tista, há muito mais por meio daquilo que se vê e ouve. Recheados de easter eggs, não será à toa que até os menos atentos notarão os cartazez de Tubarão (Jaws, 1975) ou Uma Noite Alucinante (Evil Dead, 1981) pendurados nos cenários, ou da foto do próprio Stephen King na contra-capa de um livro a ser lido por um segurança no quarto episódio. E além da interessante fotografia de época, os mais importantes momentos são marcados com grandes clássicos da música pop, aqueles que tocavam nas rádios e fitas K7 dos walkmans pendurados na cintura. Por isso que este obsoleto objeto tem seu momento de devida importância na história, tanto no começo, quanto no fim.

Não há exagero em nenhuma parte, e quando há, não está fora de contexto. Tudo se encaixa tão bem que a impressão que temos é de um produto original. Logo no primeiro episódio o Delegado Hopper percebe que o desaparecimento é algo sério quando a bicicleta do garoto é encontrada abandonada pois, segundo ele, nenhum garoto daquela idade abandonaria aquilo que é seu maior troféu de liberdade, e numa busca desesperada para compensar uma tragédia vivida (que não vale a pena comentar para não estragar a história), é isso que o motiva a ir até as últimas consequências para desvendar um mistério que naturalmente o levará a outro. Então, é basicamente em cima dessa metáfora da liberdade e da libertação que tudo é construído, e terem se atentado a uma época específica deixa tudo mais empolgante, já que nos aventuramos junto com os personagens de forma muito mais presente e próxima, numa experiência que não seria a mesma se ambientado em um período mais atual, onde os aparatos tecnológicos como celulares, tablets e computadores atrapalhariam com muita facilidade essa intenção mais grupista, fraternal e de explorar o espaço que se vive.

E sobre o "tal" retorno de Winona?

Ela que foi uma das mais icônicas e rentáveis atrizes nos anos 90, sempre taxada como "a esquisitona" por conta de seus papéis que fugiam da zona de conforto que esperavam, já passou por poucas e boas, inclusive por um surto cleptomaníaco que a levou para um julgamento em 2001, criando um movimento mundial chamado "Free Winona". Além de ter sido um dos primeiros grandes memes da época (quando a palavra "meme" sequer existia), o episódio mostrou um lado preocupante da fama, a qual Winona se distanciou cada vez mais com o passar dos anos ao ponto do quase esquecimento. Não que ela seja uma atriz completa, mas sua aparência frágil e fisionomia que iam na contra mão de padrões sempre trouxeram maior simplicidade a papéis complexos, e uma honestidade que os filmes, por vezes, careciam. Não é à toa, então, que Joyce Byer seja sua melhor personagem em anos, de um tipo que tudo tem a ver tanto com sua vida pessoal como com seu currículo de personagens perturbados. A ansiosa que é vista à beira da loucura pelo sumiço de seu filho não apenas se torna cômica na tragédia, mas também é a liga, o glútem de toda a história, já que é ela quem, no fim, agregará tudo. Não tem como evitar as gargalhadas todas as vezes em que ela aparece, no seu jeitão estridente, estabanado, de passo apertado e braços que não conseguem acompanhar o ritmo. Joyce é uma bagunça de pessoa, mas existe uma alma tão bem construída nela e um senso de responsabilidade tão forte que é difícil não se sensibilizar ou simpatizar, seja com sua histeria caricata ou com o honesto desespero de uma mãe que desacredita na morte do filho. E são os momentos mais engraçados que fazem os outros raros e pequenos momentos dramáticos serem tão impactantes, e dentre tantas excelentes qualidades que o seriado tem, a atriz merece um destaque especial, até porque é bastante interessante a maneira como fazem uma personagem que parecia ser tão coadjuvante crescer e se tornar tão dominante.

Mesmo promovido como um horror, a produção vaga por gêneros distintos, sendo dramático, cômico, surpreendente, apreensivo e assustador. Nunca um gênero domina mais que os outro, tal como os terrores dramáticos espanhóis assinados por Guilhermo del Toro como O Labirinto do Fauno (2006), O Orfanato (2007) ou Os Olhos de Julia (2010). Claro que as estéticas são bastante diferentes, mas a intenção sensitiva e a sinergia dessas diferentes camadas é efetiva da mesma maneira.

Essa qualidade narrativa é o que dá dinamismo em tudo, e a opção pela linearidade das tramas e subtramas (com raros flashbacks para embasar alguns fatos) apenas ajuda, promovendo espaço e oportunidade para todos personagens crescerem em seus defeitos e qualidades, mesmo que por alguns momentos o passado de alguns não seja muito bem explorado ou desenvolvido. Mas nada atrapalha a maneira como três pontos de vistas, de três gerações diferentes, se interceptam em um determinado ponto. Por um lado a história mostra a visão mais infantil e fantasiosa sobre o mundo, que se contrapõe com a visão mais trágica e realista da vida adulta, e no meio termo, aqueles meros sonhos juvenis que ainda transitam entre uma fase e outra, sem regras ou foco, havendo oportunidades para arrependimentos sinceros em um acontecimento central que fortalecerá e trará a maturidade que falta a todos, precoce ou tardia.

Assistí-lo definitivamente é como entrar numa pequenina máquina do tempo e sentir as emoções de como o modo de vida e os sonhos eram completamente diferentes de hoje. Isso não quer dizer que naquela época tudo parecia melhor, mas é um resgate necessário para observarmos como em tão pouco tempo, dentro de uma linha histórica, tudo se modificou tão depressa, seja no sentido tecnológico, seja no sentido social. É aquele tipo de situação em que gritar "vamos, amigos!" deixa de ser uma brincadeira de quintal para ter uma importância verdadeira, e no fim de cada episódio tudo ter uma moral como os episódios de He-Man.

Por essas e outras que, assim como os filmes já citados, o que se encontra aqui, em suma, também é uma grande ode à amizade e ao companheirismo e à consciência de que nenhum indivíduo está sozinho, por mais diferente que ele seja ou se sinta. E como uma obra de ficção e fantasia, ele já se firmou como um interessante produto que, no futuro, provavelmente terá marcado uma geração.

CONCLUSÃO...
Stranger Things merece todos os créditos que leva, sendo, de longe, uma das coisas mais interessantes que surgiram no gênero nos últimos saturados anos de vampiros mirins e lobisomens descamisados. Esqueça das fadas e da violência gratuita de True Blood, dessa vez estamos falando de um tipo de fantasia acessível a qualquer faixa etária, que diverte e emociona, e que nos relembra a razão de existência do cinema e da TV, que é nos transportar para outras dimensões sem sair do mesmo lugar.

Nenhum comentário:

Add to Flipboard Magazine.