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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

CASAMENTO, TECNOLOGIA, RACISMO E DROGAS...

★★★★★★★★★☆
Título: Chelsea Does...
Ano: 2016
Gênero: Documentário, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Eddie Schmidt
Elenco: Chelsea Handler
País: Estados Unidos
Duração: aproximadamente 70 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Através de quatro temas, Chelsea Handler irá buscar seu autoconhecimento ao mesmo tempo que se aprofunda em questões atuais de delicada discussão, mas que irá desenvolver da melhor forma com seu humor sarcástico e autodepreciativo sem sair da seriedade.

O QUE TENHO A DIZER...
Embora ela tenha 40 anos, sua carreira e sucesso é, digamos, um tanto recente. Resumidamente começou sua carreira como comediante de stand ups, e seu reconhecimento teve início na série de pegadinhas chamada Girls Behaving Badly (2002-2005). O sucesso veio mesmo a partir de 2006, quando comandou seu próprio talk show, o Chelsea Lately, no canal E!. Apesar do sucesso progressivo do programa ao longo dos anos, ela decidiu encerrá-lo em 2014.

Um tanto absorvida pelo mundo fútil e fictício das celebridades em um programa que por mais que se esforçasse não podia se aprofundar nos assuntos que realmente lhe interessavam porque, como ela mesma cheogou a dizer, quanto pior o entrevistado, mais patético seria e mais o público iria gostar, talvez tenha sido essa a necessidade de mudar os rumos de sua carreira como comediante.

Com sua saída do canal E!, ela participou de um stand up especial encomendado pela própria Netflix entitulado Uganda Be Kidding Me (2014), e agora o serviço lança Chelsea Does, que foge completamente daquilo que ela ficou conhecida por fazer. Não é um talk show, não é um stand up comedy, não é um documentário comum. É um misto de reality show documentado, dividido em quatro episódio com a essência de seu humor, mas sem deixar de falar de alguns temas interessantes e que, para ela, são os assuntos que mais a incomodam.

Ao comparar essas duas produções da Netflix em que participa, percebe-se um grande avanço na carreira de uma mulher que, como ela diz em um dos episódios do documentário, está mais madura e consciente de sua posição no mundo do que antes, pesando globalmente e agindo globalmente.

O humor de Chelsea como comediante de stand ups é duro, sempre crítico e reverso, ou seja, se ela quer criticar o racismo e o machismo, ela vai fazer piadas racistas e machistas de forma a ridicularizar essas pessoas, que irão desencadear no público aquelas risadas de constrangimento, aquelas que damos não porque de fato achamos aquilo engraçado, mas porque atingem nosso ponto de defesa, porque nos identificamos com a forma ridícula como ela faz essas situações ou pessoas parecerem, porque somos aquilo, ou porque já vimos aquilo acontecer, ou simplesmente porque ela dá um tapa na cara daqueles que gostaríamos de dar.

Já o humor de Chelsea como pessoa é autodepreciativo e sarcástico, dizendo o que pensa, o que acha e o que quer. Não interessa a forma como as pessoas a interpretem, ela tem uma bagagem familiar e cultural que embasa sua personalidade, o que é mostrado aos poucos no decorrer dos quatro episódios.

Mas aqui o tom não é de um stand up e por isso ela não precisa criar personas e não precisa ser constrangedora. Dessa vez ela irá tratar dos temas vagando entre a informalidade e a análise. Não é à toa que todos episódios começam com uma reunião de amigos em uma mesa, da mesma forma como também tem encontros mais introspectivos com seu terapeuta, dividindo os momentos para discutir e momentos para refletir. E partindo-se desse princípio os temas se desenvolvem da mesma forma, e que são quatro: casamento, tecnologia, racismo e drogas.

Parecem temas um tanto corriqueiros e monótonos. O que há de interessante para se discutir sobre o casamento? O que Chelsea tem a dizer sobre tecnologia? Racismo outra vez? E... bom... drogas. Certeza eu ela já consumiu muito.

É o que se pensa em um primeiro momento.

Mas para começar, ela mesma não tem muito o que dizer sobre tudo isso. Na verdade esses temas existem para autoconhecimento e para esclarecer melhor seus espectadores sobre diferentes pontos de vista e opiniões. Quem realmente terá coisas a dizer são as pessoas que ela convida para participar ou aquelas entrevistadas através do princípio democrático, seja para favorecer suas idéias pessoais ou para contrariá-las. Isso quer dizer que ela evita ao máximo traçar julgamentos muito pessoais sobre certas idéias ou declarações, por mais que discorde deles. O oferecido é a oportunidade para todos darem os seus pontos de vista, porque já que ela pode fazer isso, podem também as outras pessoas, e seu papel é confrontá-las saudavelmente e respeitá-las, até quando isso chega a ser impossível.

Quando desenvolve o tema do casamento, que é o primeiro episódio, ela deixa claro que, por mais que nunca tenha se importado com isso e ache difícil entender a razão dessa constituição familiar ser tão importante na sociedade, ela não consegue esconder a frustração por não fazer parte disso devido a pressão cultural forte existente à nossa volta, que nos condiciona a tratar do casamento e da fidelidade como um objetivo e um compromisso que muitas vezes é ilusório, o que fica claro quando entrevista Noel Biderman, que na época da entrevista ainda era diretor do Ashley Madison, o maior website de relacionamentos extra-conjugais. Isso não significa que todo casamento é falido. Ela sabe que existem dificuldades durante o processo e que muitas vezes eles funcionam, como foi o caso de seus pais. O que ela questiona é a razão da fixação das pessoas sobre o tema, inclusive ela mesma.

Mesmo sendo o sentimento de Chelsea sobre isso, existem outras pessoas que se identificam com ele, como é o caso de uma adolescente que expressa não ter interesse em casar quando crescer porque para ela existem coisas mais importantes a fazer do que isso. Também não evita as pessoas que acreditam no casamento de repensarem sobre a idéia, ou sobre os limites e consequências de uma relação a longo termo.

O mesmo tom é abordado sobre a tecnologia, em que ela age como uma verdadeira analfabeta digital tal qual muitas pessoas, questionando a todo momento como é a relação das gerações que nasceram com poucos recursos versus aquelas que já nascem com um celular nas mãos e porque a necessidade de se desenvolver coisas que nem sempre funcionam como queremos na ilusão de que elas podem facilitar nossa vida o tempo todo.

Mas sem dúvida os pontos altos são os dois últimos episódios, sobre o racismo e drogas respectivamente, em que consegue a difícil tarefa de equilibrar a seriedade do tema com o humor, sem descarecterizar ou transformá-lo em ferramenta cliché para piadas, como geralmente é o que se vê e que muito ela já fez.

Temas delicados por si só, isso não obriga Chelsea a pisar em ovos ao falar sobre eles, mas também não exagera quando confronta alguns indíviduos sobre o assunto, como quando entrevista um segregatista ou quando conhece pessoas de uma pequena cidade da Carolina do Sul durante o episódio sobre racismo. O que ela faz com essas pessoas e dar corda para que elas mesmas se enforquem em suas idéias absurdas que negligenciam qualquer direito humano existente. Seu desconforto nessas horas é evidente, mas ela deixa a pessoa se posicionar porque percebe que quanto mais ela fala e desenvolve suas idéias estapafúrdias, pior fica e mais constrangedor é para elas mesmas. Ver um homem apoiar a barreira que divide a fronteira entre Estados Unidos e México, comparando mexicanos a assaltantes e ladrões (ainda mais depois que afirma ter mexicanos na família), ou ouvir compararaem negros a tratores, ou uma mulher afirmar que existiu boas consequências com a escravidão, é estarrecedor. E nessas horas Chelsea lança seu sarcamos como facas a cortarem pescoços. Tudo muito sutil, mas é essa a função dessa figura de linguagem e que ela sabe usar muito bem.

Quando fala sobre as drogas, pode até soar apologético, mas ao contrário disso, ela demonstra ser uma pessoa que tem plena consciência do que são e de como seu corpo reage, além de ter total controle sobre elas, e não o contrário. Sua intenção é esclarecedora, seja para o uso recreativo ou puramente experimental, como faz ao se submeter a uma sessão espíritual com ayuaska, ou até mesmo quando, supervisionada por uma especialista no assunto, experimenta misturar algumas delas para que suas reações sejam documentadas pelas câmeras e sejamos testemunhas de que o uso indiscriminado e desinformado de drogas que estão ao nosso alcance é perigoso.

Os episódios tem uma progressão interessante. A princípio ela aparenta ser uma celebridade um tanto egocêntrica, com uma grande necessidade de se autoafirmar, falar de suas conquistas e preservar a identidade de que ela é uma mulher bem sucedida, rica, influente e que parece ter domínio sobre tudo, como durante sua reunião entre amigos no primeiro episódio, ou como quando sai pelo Vale do Silício pregando suas fotos pelas paredes dos estabelecimentos, como se todos tivessem obrigação de saber quem ela é.

Começando com um tema aparentemente fútil e que depois converge para para preocupações mais atuais de grande complexidade sociocultural, é nítido como a consciência que ela tem sobre as coisas também muda, inclusive sobre si mesma. É o que acontece quando ela está em uma mesa com representantes sociais no terceiro episódio, em que um deles começa a questioná-la sobre suas piadas que são julgadas como racistas e preconceituosas mesmo que ela, como comediante, não enxergue desta maneira. A forma como eles esclarecem esse ponto de vista demonstra como ela não tinha consciência de que seu humor pode ferir pessoas, raças e culturas quando analisados através de um maior escopo. E esse é o grande ponto transformador da série, pois a partir daí Chelsea se distancia da celebridade e se aproxima do ser humano comum em que o racismo e o preconceito estão tão absorvidos em nossa cultura que nós nem notamos quando somos, por mais que nos auto consideramos não ser. E é essa a percepção que ela passa a ter, de que de tudo ela nada sabe.

E com o último episódio ela fecha com chave de ouro esse pequeno ciclo transformador ao expressar a sua fragilidade e se despir emocionalmente de uma forma que ela nunca fez antes e nunca se permitiu. Por vários momentos podemos rir muito, mas também nos sentir extremamente sensibilizados. Chelsea soube escolher as pessoas certas para falar sobre temas importantes da maneira mais fácil, acessível e informativa possível, seja com humor ou sem ele, mas com equilíbrio e foco.

Não é um documentário por excelência porque é notório que ele se divide entre situações forjadas para criar um desenvolvimento aceitável e que entretém ao mesmo tempo que utiliza situações reais para fundamentar claramente os temas propostos. Independente disso é relevante, principalmente em uma época em que ao invés de avançarmos, retrocedemos nas idéias e nos pensamentos coletivos. E Chelsea, na verdade, passa a ser uma projeção de nós mesmos, daqueles que precisam buscar seu autoconhecimento e analisar a sua relação com o mundo.

CONCLUSÃO...
Netflix acerta mais uma vez com uma série documentada diferente de muita coisa que já produzida no gênero. Só depois de assistido percebe-se que ninguém melhor que Chelsea para tratar desses assuntos com equilíbrio entre o humor e a seriedade. Ao mesmo tempo que é cômico, consegue ser impactante e por vezes difícil de ser digerido e para compreendê-lo devemos nos abrir às opiniões diversas, tal qual ela mesma teve de fazer, seja para entender a tecnologia, seja para mostrar os horrores do racismo. Seja para dialogar sobre a vida conjugal ou consigo mesma.

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