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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

BRILHANTE!

★★★★★★★★★☆
Título: Que Horas Ela Volta?
Ano: 2015
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: Livre
Direção: Anna Muylaert
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Michel Joelsas, Karine Teles, Lourenço Mutarelli
País: Brasil
Duração: 112min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Val, uma empregada doméstica pernambucana, trabalha em uma casa em São Paulo há treze anos cuidando de Fabinho, filho de Bárbara e Carlos. Ela é pega de surpresa quando Jéssica, sua filha que permaneceu no nordeste, entra em contato para dizer que está indo morar com ela para estudar.

O QUE TENHO A DIZER...
Mesmo carioca, Regina Casé nunca negou ser uma mulher do povo, misturada e da mistura. Como apresentadora, mostrou muito bem isso na televisão com Programa Legal (1992), Brasil Legal (1995), Muvuca (1998) e no atual Esquenta!. Todos programas cuja proposta principal é mostrar a diversidade brasileira, seja na raça, na crença ou na cultura. Como atriz também sempre fez questão de ter essa abordagem mais popular, seja na comédia ou no drama. Ao longo da carreira, até que não possui tantos filmes e novelas no currículo como poderia parecer porque sempre deixou claro que prefere estar no meio das pessoas, conhecendo e nos fazendo conhecer. Isso não diminui seu mérito como atriz, pelo contrário, essa personalidade enraizada em todos os lugares sempre foi seu melhor laboratório para criar personagens tão únicas e realistas até mesmo quando havia pitadas de escracho quando a liberdade pedia, como foram nas novelas Cambalacho (1986) ou As Filhas da Mãe (2001).

Assim como na comédia dramática e romântica Eu, Tu, Eles (2000), em que interpretou a também nordestina Darlene, o trabalho que ela desempenha em Que Horas Ela Volta? é igualmente impressionante e delicado, construído de maneira que apenas uma atriz com uma minuciosa capacidade de observação e percepção poderia fazer. Sua personagem neste filme consegue transformar os estereótipos em características naturais que abraçam não apenas todo o regionalismo pernambucano de maneira confortante e verdadeira, mas também detalhes de diversos tipos de mulheres, mães e trabalhadoras espalhadas pelo Brasil, o que faz dela tão carismática e tocante, como alguém que já conhecessemos há muito tempo. A honestidade em que atua, seja na maneira de falar, gesticular ou se comportar em cena, transparece essa delicadeza e respeito, conseguindo aquela raro feito em que Val deixa de ser uma personagem e se tranforma em uma pessoa de fato.

Escrito, produzido e dirigido por Anna Muylaert, o filme é baseado nas próprias experiências da diretora com a babá de seu filho, a qual migrou do nordeste para São Paulo, deixando lá sua filha pequena. A idéia do filme surgiu ainda no começo de 2000, a partir daí seu roteiro foi reescrito quatro vezes com apoio da própria atriz, e o projeto foi concebido apenas em 2014. Essa demora na concretização é resultado da meticulosidade e da atenção aos detalhes, perceptíveis pela forma realista com que ela costura e desenvolve tantos temas e subtemas de maneira tão sinérgica e sem pontos soltos ou buracos. Alguns com conclusões mais evidentes, outros com resoluções mais sutis ou abertas para que o espectador conclua conforme seu entendimento.

Toda a história se passa basicamente em um único cenário, dentro de uma mansão de um bairro nobre em São Paulo. Apenas o fato de ter sido filmado em uma locação real já intensifica essa atmosfera realista. Nada de câmera na mão e imagem balançando para impressionar no improviso do dia a dia da protagonista. Tudo é muito estático. Somos observadores ocultos, e devemos prestar bastante atenção em tudo com muito cuidado porque, embora tudo seja linear, há inúmeros pontos a serem observados em subtemas que surgem como uma verdadeira análise antropológica, pois Muylaert não poupa o espectador de um crescente de situações que se agregam perifericamente conforme o tema principal se desenvolve, que é a chegada de Jéssica (Camila Márdila).

Ao contrário do que aparenta, o filme não é simplesmente o drama de uma doméstica com seus patrões de classe média e a diferença social entre eles, mas da linha tênue que separa a intimidade do profissionalismo quando em um convívio tão constante e direto como é entre eles. De certa forma isso o deixa muito próximo do filme chileno A Criada (La Nana, 2009), porque também existe aqui uma abordagem sobre o territorialismo humano e as limitações impostas por aqueles que controlam o ambiente que possuem, explorando o comportamento que às vezes chega ao limite do irracional para a preservação de seu espaço.

Observamos também o respeito imputado nesses diferentes espaços por conta dessa relação, como o fato de Val morar na mesma casa há treze anos, mas estar restrita a um pequeno e incômodo quarto nos fundos para lembrá-la todos os dias de que, embora seja considerada "um membro da família", esse título é muito mais pelo seu longo tempo de trabalho do que por realmente ter sido agregada a ela. Por isso o conflito que Jéssica gera ao se comportar de maneira livre e igualitária na casa. A princípio chega a parecer apenas um comportamento rebelde, esnobe ou prepotente, mas que em determinado ponto nos revela que é simplesmente por ela não conseguir lidar com essa completa subservidão na qual sua mãe se submete.

Muylaert também constrói muito bem situações onde ocorrem transferências sentimentais e psicológicas por conta da ausência de uns frente a presença constante de outros. A ausência tanto de Val com sua filha, quanto de sua patroa com seu filho, são diferente acasos. A protagonista não vê sua filha há anos porque mora longe, enquanto a patroa não dá atenção ao seu filho que vive na própria casa. Por isso a relação entre Val e Fabinho (Michel Joelsas) é tão próxima e maternal, ou até mesmo na atenção que Carlos oferece a Jéssica, carregado pelo descaso e indiferença de sua esposa. Mas aí a diretora volta a entrar no territorialismo e do sentimento de posse quando Bárbara se sente afetada por essas transferências.

A diretora também não poupa o dedo na ferida, como quando a água da piscina é trocada, ou quando Val festeja a aprovação da filha em uma faculdade estadual concorrida, enquanto sua patroa se decepciona com o filho que não conseguiu, questionando o cenário social do país na última década e a crescente resistência de uma fatia populacional a respeito das melhores possibilidades de mobilidade social e acesso a informação.

Esses são apenas alguns exemplos de diversos temas abordados, que se expressam naturalmente e em momentos muito exatos, sabendo que a base de toda essas complexas relações se resumem na posse e remuneração: recebe-se para obedecer, e usufrui-se daquilo que se pode ter. Regras, limites e as noções arbitrárias que os envolvem.

Por essas e outras que este filme não somente é um dos mais importantes nos últimos anos, mas de completa relevância, fugindo da zona de conforto que o cinema nacional encontrou e que nos faz relembrar de como nossas produções são muito bem apreciadas quando isso acontece.

Não é um drama pesado, de fazer as pessoas debulharem em lágrimas porque não é sentimentalista, muito embora haja uma cena ou outra que acaba nos atingindo com exatidão. Também não entra em detalhes sobre o passado das protagonistas, mas nos dá ferramentas para construí-los de maneira bastante coerente. Como dito, tudo é abordado de forma natural, onde uma causa traz consequências, que trazem outras consequências e assim por diante, até chegar o momento de decisão no meio de tantos pontos de vista distintos. O ápice da história é o denominador comum encontrado por Val e Jéssica, além de também motivadora, como uma oportunidade de consertar os erros do passado e impedir que os mesmos sejam repetidos no futuro.

Merecidamente o filme foi selecionado para representar o Brasil na votação dos finalistas para o Oscar, além de ter ficado entre os cinco melhores filmes estrangeiros na National Board Of Review. Regina Casé também venceu o prêmio de Melhor Atriz em Cannes na categoria mundial e Anna Muylaert venceu por unanimidade o prêmio Panorama no Festival de Berlim.

CONCLUSÃO...
Muylaert nos insere na vida de Val com sutileza, naturalidade e realismo, desenvolvendo sérios conflitos e também discutindo diferentes problemáticas que se agregam no desenvolver da história, transformando o filme em uma das mais importantes e relevantes produções nacionais nos últimos anos, no qual Regina Casé brilha em todos os sentidos, fazendo da personagem alguém tão cativante e real que temos a impressão de conhece-la há anos.

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