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quinta-feira, 16 de abril de 2015

DARE THE DEVIL...

★★★★★
Título: Demolidor (Daredevil)
Ano: 2015
Gênero: Drama, Ação, Aventura
Classificação: 16 anos
Direção: Vários
Elenco: Charlie Cox, Deborah Ann Woll, Elden Henson, Vincen D'Onofrio, Toby Leonard Moore, Vondie Curtis-Hall
País: Estados Unidos
Duração: 45 min.

SOBRE O QUE É O SERIADO?
Sobre um cego que volta a Hell's Kitchen para abrir sua firma de advocacia durante o dia e a noite usar o peso da sua justiça para combater o crime.

O QUE TENHO A DIZER...
Eu não sei como anda o consumo de histórias em quadrinhos hoje em dia, mas na minha época de criança - pelo menos na minha cidade - vendia-se muito. Eu só não via uma pessoa ler além de mim. Parece que as pessoas tinham vergonha em dizer que liam quadrinhos, talvez por isso faziam escondidas. Sei que vendia muito porque esgotava rápido. Era coisa da edição chegar na segunda-feira e eu ter que ir correndo na banca comprar porque na terça-feira já teria vendido tudo.

O que sei é que, com vendas ou sem vendas, a Marvel está dominando o planeta tanto quanto o Google e o Facebook. Seus filmes, em um período de 15 anos, já arrecadaram mais de US$ 10 bilhões no mundo. Isso é um número que alguns grandes estúdios não conseguem somar nos últimos 20 anos com seus principais títulos. A dominação da Marvel no gênero tomou tanta gente de surpresa que demorou os mesmos 15 anos para a DC e a Warner sairem do catatonismo e reagir a esse esmagador fato de que o mundo não é apenas Batman e Superman, e humanos adoram consumir filmes, séries e desenhos de qualquer super herói, mais do que histórias em quadrinhos.

Em uma parceria com a Netflix, o Demolidor virou uma série de 13 episódios. Demolidor será a primeira de quatro séries a serem lançadas pelo serviço entre 2015 e 2016, cada um sobre um herói, antes de uma minissérie especial reunir todos eles. Os demais seriados serão Jessica Jones, Iron Fist e Luke Cage, todos também da Marvel. Isso faz parte de uma estratégia da empresa bastante parecida com a que foi feita com Os Vingadores, em que os personagens primeiro tiveram seus filmes individuais para depois ter o filme com todos reunidos. É também parte da estratégia de expansão do Universo Marvel, que realmente fica cada vez maior e dominante.

A empreitada em Demolidor levou a experiência em adaptações de personagens de quadrinhos para a TV em outra escala. Diferente de Arrow ou The Flash, personagens da DC que atualmente fazem sucesso no canal Warner e produzidos para um público mais juvenil, Demolidor é feito para um outro tipo de público, aquele que gosta de produções caprichadas, histórias densas, climas sombrios e uma experiência cinemática muito maior. Como dito pelo próprio ator Vincent D'Onofrio, que faz o vilão Wilson Fisk, "a experiência não é de um seriado de 13 episódios, mas de um filme de 13 horas de duração". Realmente é essa a sensação que se tem tanto pelos elementos mais técnicos, como a cinematografia, a edição e direção, como também pela construção e desenvolvimento da história e de seus personagens, nos quais é possível notar as referências diretas e indiretas aos quadrinhos e uma progressão bastante linear e coerente de cada um deles, episódio a episódio.

Os episódios não tem qualquer relação com o filme de 2003 que estrelava Ben Affleck, nem ao menos na cronologia. A história mostrará o início de Matt Murdock na sua vida de vigilante solitário durante a noite, e de advogado durante o dia. Tudo terá início de fato em sua vida quando resolve salvar Karen Page, personagem também dos quadrinhos e que será o ponto de partida de todas as tramas e subtramas da série que se desenvolverá no bairro de Manhattan conhecido como Hell's Kitchen, lugar onde Murdock viveu boa parte da infância até seu pai ser morto por capangas da máfia aos 9 anos. É este o trauma principal do personagem, e a razão que o fará combater o crime na tentativa de livrar o bairro e seus moradores dos mafiosos. Será sua vingança de longo termo pela morte do pai.

A alcunha de "homem sem medo" ou de "diabo" que ele carrega não é à toa. Quando criança, Murdock sofreu um acidente no qual seus olhos foram queimados por um produto tóxico e radioativo. Ele ficou cego, mas em compensação a radioatividade deixou seus demais sentidos ultrasensíveis. Qualquer pessoa ou objeto que tenha temperatura, conduza energia, emita som ou faça movimentos, é o necessário para ele conseguir captar todas as formas ao seu redor, como um sonar ambulante. Ele não enxerga, mas seu cérebro consegue criar imagens sobre tudo que está à sua volta apenas pelas variações atmosféricas que esses elementos criam isoladamente ou em conjunto. Seus sentidos são tão aguçados que ele consegue prever ações e movimentos das pessoas apenas pela alteração do ar ou da pressão, ou do ranger dos ossos. Murdock consegue ler livros, revistas e jornais apenas sentindo o relevo da tinta no papel, e sabe se alguém mente apenas pela temperatura que o corpo dessa pessoa transmite, do suor que ela evapora, ou da frequência vocal e cardíaca que atinge. Ele não desvia de balas, mas consegue sair da mira antes do gatilho ser puxado até o fim.

Tudo isso parece impressionante, mas o seriado consegue fazer tudo ser crível ao ponto de conseguirmos imaginar como é essa bagunça na cabeça do herói. Nos quadrinhos houve uma personagem que conseguiu usar seus poderes para entrar na mente de Murdock, mas ela não conseguiu suportar muito tempo tamanha a força com que o cérebro dele trabalha para traduzir tanta informação. No seriado há um momento em que o personagem, ainda na infância, acredita estar ficando louco, quando lhe é dito que, na realidade, são os seus sentidos que se desenvolvem.

Diferente do filme, não são usados efeitos especiais de ponta para mostrar como são as imagens que se formam na cabeça de Murdock, mas a maneira como o diretor utiliza as cenas para demonstrar as sensações ao redor do personagem já conseguem fazer o espectador imaginar tudo isso de forma muito simples e convincente.

Como o seriado é hospedado pela Netflix, que libera seus episódios todos de uma vez, não há necessidade dos primeiros episódios terem o intuito de prender a atenção dos assinantes de maneira muito imediata. O roteiro até tenta soltar algumas cena de ação aqui e alí, mas o que manda, a princípio, é a apresentação dos coadjuvantes e a relação entre eles, sendo lá para o quinto episódio que todas as tramas vão tomando forma e direção.

Tudo vale a pena desde sua abertura, que basicamente ilustra como Murdock "enxerga" o mundo em que vive. A experiência que se tem é tão imersiva quanto a que Christopher Nolan criou com a trilogia Batman, naquela sensação crua e angustiante de que cada vez que o herói acredita estar próximo da solução e do fim, os fatos revelam-se muito maiores do que realmente são. Ou seja, quanto mais se cava, maior o buraco fica. Quando Murdock descobre a dimensão do problema em que se enfiou e as proporções de tudo aquilo que ele terá de combater, dá até vontade de desistir de tudo por ele, só pra facilitar as coisas e popupá-lo de tanto trabalho.

As tramas realmente foram muito bem construídas e caracterizam-no no gênero dramático e não simplesmente na ação vazia de herói combatendo vilões. Claro que qualquer motivo será motivo para o personagem sentar a mão em alguém e fazer da cena um festival de murros e voadoras tão bem coreografadas quanto em Matrix. E por mais que ele pregue que não mata, fica difícil levar isso muito a sério depois de tanta pancadaria - às vezes - gratuita.

Só que o fator mais interessante do universo da Marvel é que seus vilões, tanto quanto seus heróis, possuem razões muito particulares para acreditarem no que fazem e nos fazer compreender os seus lados na história também. É isso que os tornam mais humanos e menos maniqueístas, algo muito bem explorado nessa adaptação que coloca Murdock e Fisk como inimigos, mas com diversas características em comum e constantemente em dúvida sobre as razões de fazerem o que fazem.

Mesmo com tanto cuidado ao desenvolver a história de Karen Page e tudo que se segue a partir dela, há um subaproveitamento dessa personagem que, junto com Foggy, o grande amigo e sócio do protagonista, formam o núcleo responsável por aliviar o clima sombrio e pesado da série. É uma dupla que não tem química e que os roteiristas também não ajudam com os diálogos fracos e que quase nunca funcionam quando tentam fazer deles personagens engraçados. Ao invés de existirem para fortalecer a existência do protagonista, fazem o inverso, e isso não apenas é um dos pontos negativos como é também bastante frustrante. Mas é algo que tem conserto e de forma alguma estraga qualquer coisa, apenas prolonga alguns vazios.

Frustrante também é a presença de Rosario Dawson, que até entra muito bem na série e engrandece as poucas cenas que aparece, mas sai um tanto à francesa e sem muita lógica justamente quando sua função nela parecia ter um sentido muito mais importante e desafiador ao protagonista do que realmente foi. Conhecida pelo codinome de Night Nurse, a personagem também foi adaptada e sua função nos quadrinhos é a mesma que o seriado mostra, só que parece que a produção precisava de um grande nome no elenco, mas o orçamento não era suficiente para pagar mais de dois pares e meio de episódios. Mas isso é apenas outro detalhe que pode-se resolver depois.

Percebe-se o cuidado que tiveram em levar todos os personagens mais marcantes dos quadrinhos para a produção, bem como mostrar o processo de evolução e transformação de cada um deles, principalmente as de Murdock para o Demolidor que conhecemos, simultaneamente com o engrandecimento de Wilson Fisk até se tornar o mais poderoso e temido chefe da máfia, o Kingpin.

Não há como negar que a Marvel tem uma admirável estratégia comercial. Ela poderia ter vendido o seriado para qualquer grande canal aberto ou a cabo, mas preferiu ir para um mercado mais selecionado e em crescimento, no qual a audiência pode ser menor, mas é garantida até mesmo por quem não assistir. Sem falar da liberdade criativa, que deu oportunidade para a marca deixar um pouco de lado algumas limitações exigidas pelo público juvenil que consome seus outros produtos para, finalmente, entrar em um território mais adulto e de conteúdo mais pesado. Para se ter uma idéia, no Netflix o seriado é recomendado para maiores de 18 anos. Claro que isso chega a um certo exagero, mas realmente há cenas que seriam bastante pesadas para menores de 16.

Demolidor teve uma excelente temporada de estréia e ainda há muita coisa a ser explorada para futuras temporadas. A personagem Elektra é indiretamente referenciada em apenas um episódio como "a garota grega" na qual Murdock teve interesse na faculdade, mas poderia ser um forte adendo no futuro.

Para os fãs, uma grande adaptação que compensou a péssima versão cinematográfica de 2003. Para aqueles que não são fãs ou nem ao menos conhecem o personagem, está aí uma excelente oportunidade para conhecer o submundo de Hell's Kitchen e as proezas de Demolidor.

CONCLUSÃO...
Expandindo seu universo para um lado mais sombrio e violento, a Marvel acertou em cheio ao pegar um personagem que nem chega a ser tão complexo ou carismático como outros, mas conseguiu dar uma densidade maior à marca, algo que ela não conseguiria fazer se não utilizasse outras estratégias como a que está usando agora. Além disso, isso só veio para fortalecer mais ainda a proposta do Netflix, que não é um canal e não é um website, mas é um banco de filmes e seriados que está ganhando forças para ter suas próprias produções. Demolidor pode ter suas falhas e algumas subtramas esquecíveis, mas o grande caos em que o personagem se encontra é, sem dúvida, tão imersivo quanto o que Nolan fez com sua trilogia Batman.

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