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sábado, 21 de março de 2015

MUITO ALÉM DA COR...

★★★★★★★★★☆
Título: Queridas Pessoas Brancas (Dear White People)
Ano: 2014
Gênero: Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Justin Simien
Elenco: Tessa Thompson, Tyler James Williams, Brandon Bell, Teyonah Parris
País: Estados Unidos
Duração: 108 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A vida de quatro estudantes negros na faculdade e como convivem com isso nos dias de hoje.

O QUE TENHO A DIZER...
Filme de estréia do jovem Justin Simien, o qual dirigiu, escreveu e produziu esta pequena e relevante sátira social. Recebeu críticas muito positivas pelo mundo, e sem dúvida é uma grande e forte estréia deste novato cineasta norteamericano de 31 anos.

Definitivamente algo que soará desconfortável para muitos, principalmente aos mais sensíveis e intolerantes (para não dizer racistas). Mas também não é um filme de fácil assimilação, embora o diretor tente ser o mais didático possível, até mesmo em separar o filme em capítulos que mais parecem esquetes de uma sitcom norteamericana tendenciosamente racial.

Apresentado no Festival de Sundance de 2014, a princípio o diretor havia feito apenas um trailer do filme antes mesmo de filmá-lo. O "falso" trailer teve objetivo de arrecadar fundos para a produção, e inesperadamente teve desempenho viral, o que chamou a atenção de diversos grandes estúdios, mas o diretor optou por um financiamento independente justamente para manter a liberdade de concebê-lo exatamente da forma como ele imaginava. Uma decisão muito respeitosa e bastante arriscada para um estreiante. Independente dos riscos, ele sabe que a indústria cinematográfica tende a contribuir para a segregação social e racial (inclusive há uma breve discussão sobre isso dentro do próprio filme e que nisso inclui filmes do diretor Tyler Parry, também negro).

A história gira basicamente em torno de quatro estudantes negros da Universidade de Winchester, uma prestigiada universidade predominantemente de pessoas brancas, onde os negros que estudam lá, embora convivam em harmonia com os brancos, são submetidos à segregação e discriminação por conta dos sistemas de organização do campus que permitem e fortalecem a formação de castas, como, por exemplo, das quatro moradias existentes no campus, uma ser exclusivamente para negros.

Tudo começa com uma guerra que ocorre dentro uma festa temática afro-americana organizada pelos estudantes brancos na noite de Halloween, em que todos deveriam comparecer "fantasiados" de negros. A partir deste breve prólogo a narrativa volta cinco semanas antes para mostrar a chegada desses estudantes e dar introução no que culminou toda esta horrenda situação.

"Queridas pessoas brancas: o requerimento mínimo de amigos negros necessários para não parecer racista subiu para dois", é a frase de apresentação de Sam White (Tessa Thompson), uma estudante de cinema reacionária que possui um programa na rádio da universidade que leva o mesmo nome do filme. Em seu programa ela diariamente solta frases irônicas em meio a músicas da cultura negra na intenção de ridicularizar os brancos e suas atitudes dentro da universidade. Depois somos apresentados a Lionel (Tyler James Williams, o mesmo de Todo Mundo Odeia O Chris), estudante de filosofia com uma idéia muito mais centralizada entre brancos e negros, que nunca se posiciona, mas resolve escrever um artigo sobre isso, já que é uma grande oportunidade de divulgar seu trabalho. Em seguida há Coco (Teyonah Parris), uma negra que finge ser branca e que nega qualquer ato ou comportamento que caracterize sua raça, incluindo envolvimento com pessoas da mesma cor. Por último há o negro alfa da universidade, Troy (Brando Bell), filho do vice-reitor, condicionado por seu pai a pensar e agir como os brancos na crença de que assim ele consiga se bem suceder e ser alguém importante, talvez até chegar à presidência algum dia, já que Obama, o "negro de atitudes brancas", conseguiu.

Ou seja, cada um dos personagens brinca com estereótipos existentes na sociedade, representando os diversos graus de intolerância e racismo entre eles mesmos para mostrar os diferentes pontos de vista do que é ser negro. Isso tudo é o grande trunfo de Simien, que consegue desenvolver as diferentes relações entre eles e mostrar, inclusive, os atos contraditórios de cada um e que acabam por ferir aquilo que eles superficialmente demonstram ser.

"O que você acharia se alguém criasse o Queridas Pessoas Negras?", perguntam a Sam. "Não é necessário", responde ela. "Os meios de comunicação, de Fox News até os reality shows no VH1, deixam claro o que os brancos pensam de nós". Esse diálogo é talvez o que mais define toda a razão de existência do filme, que foi taxado por muitos como um filme "racista ao contrário" (este termo por si só já embute que os brancos sejam racistas por natureza). O filme definitivamente não é isso, e nem um contra-ataque aos brancos, mas demonstra os níveis de reflexão e de esclarecimento sobre a consciência coletiva de que, direta ou indiretamente, os negros são atacados e segregados o tempo todo, inclusive por eles mesmos, tamanha a repressão social que sofreram durante os séculos e ainda sofrem o tempo todo, desde a mídia que mostra que a pele bonita e perfeita tem que ser clara e sem manchas, ou um cabelo saudável tem que estar liso e sem volume, até questões mais sociais e sérias como os próprios negros evitarem se relacionar com eles mesmos para se sentirem inseridos em um grupo específico, ou aqueles que evitam os brancos por se sentirem inferiorizados.

Enquanto os extremismo de Sam White são justificáveis para tentar impor a igualdade de direitos dentro da Universidade (o que por outro lado acaba por segregá-los ainda mais por conta da rigorosidade de suas decisões), sendo ela uma metáfora clara aos grupos radicais, há a imparcialidade de Lionel que mostra que a polaridade pode trazer benefícios, mas não a homogeneidade. Coco e Troy já são as metáforas tanto do resultado da segregação, quanto do ódio racial propriamente dito. No medo de serem excluídos social e profissionalmente, eles tentam agir como os estereótipos brancos sempre usados como exemplos sociais, como a garota branca popular do colégio ou o político republicano loiro do Congresso, ao ponto de negarem suas verdadeiras raízes culturais, o cabelo crespo e de que a segregação social e racial são abusos que beneficiam grupos dententores de certos poderes.

Entre diálogos inteligentes e que não ofendem diretamente, mas que expressam as intolerâncias raciais mesmo assim, e algumas piadas que até provocam desconfortáveis risadas, pois são politicamente incorretas, presenciamos a trajetória bastante dolorosa de cada um deles em pról de seu próprio reconhecimento. De Sam, que diariamente confronta e oprime suas próprias vontades que contradizem seus atos de protesto, ou Lionel que é discriminado pelos dois grupos porque nunca se manifesta contra ninguém. De Coco, que apesar de seus hercúleos esforços para agir como uma garota branca, percebe a duras penas que isso não lhe traz benefício algum, ou Troy, que apesar de se sentir grandioso e importante em meio aos brancos, descobre que é manipulado o tempo todo por eles. Ou seja, além das discussões raciais, o filme não é somente sobre isso, mas também uma análise mais profunda do que a superficialidade da cor da pele para a busca da identidade própria. Por muitas vezes as cenas soam até poéticas, e a brilhante fotografia de Topher Osborn, numa decupagem tão bem estruturada e coesa que há muito tempo não via além de algumas excessões, como nos filmes de Wes Anderson. Esse meticuloso design de produção não apenas destaca a beleza afrodescendente como também expõe as pluraridades culturais e a naturalidade como elas se misturam nessa extensa palheta de cores, deixando claro que o negro não é nada mais do que uma cor e uma composição, e que sobra para sociedade segmentá-lo de forma ilógica.

Nessa análise comportamental e social que Simien faz através de metáforas e estereótipos, todas as situações satíricas tomam formas e cores bem definidas no propósito esclarecedor principal, e o final do filme, que é justamente o começo dele mesmo, nada mais faz do que concluir que o extremismo não leva a lugar algum, muito embora a intolerância às vezes deve ser combatida com a própria intolerância.

CONCLUSÃO...
Através das próprias experiências de Justin Simien durante seu período acadêmico, ele consegue fazer uma magnífica estréia cinematográfica dirigindo e escrevendo uma obra satírica que nos leva a imaginar como é ser um negro dentro de uma sociedade branca, e como é ser um branco em uma sociedade racialmente intolerante, e a partir daí encontrar nossa própria essência e identidade como seres humanos.

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