Translate

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

DEIXANDO AS HELENAS PARA TRÁS...

★★★★★★★
Título: Gata Velha Ainda Mia
Ano: 2014
Gênero: Drama, Suspense
Classificação: 16 anos
Direção: Rafael Primot
Elenco: Regina Duarte, Barba Paz, Gilda Nomacce
País: Brasil
Duração: 89 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Gloria Polk é uma escritora feminista que resolve publicar um novo livro depois de um hiato de mais de uma década e que aceita conceder uma entrevista a Carol, uma jovem jornalista e grande admiradora de suas obras.

O QUE TENHO A DIZER...
Com quase 50 anos de carreira na televisão, foram poucas as vezes que Regina Duarte ousou, não porque não quis, mas porque assim foi feito. Contratada da Rede Globo desde sempre, foi entitulada "namoradinha do Brasil" na década de 70, uma alcunha que carrega até hoje, da qual nunca conseguiu se desvincular. Já afirmou considerar uma honra e não se importar, mas depois de tanto tempo, ainda considerá-la como tal não apenas é anacrônico como incoerente. A emissora sempre fez questão de explorar sua imagem dessa forma, oferecendo papéis semelhantes seguidos de outros semelhantes que a estereotiparam tal qual como as Helenas de Manoel Carlos, que só ela foi responsável por três.

Mesmo assim não podemos ignorar papéis memoráveis escritos por grandes autores ao longo de sua carreira, como Malu (Malu Mulher, 1979); Viúva Porcina (Roque Santeiro, 1985); Raquel (Vale Tudo, 1988) e Maria do Carmo (Rainha da Sucata, 1990).

Em 2011 foi uma agradável surpresa ver Regina atuar de forma mais livre em O Astro, e talvez também tenha sido o choque de realidade que lhe faltava de que não existe idade para bons papéis, mas faltam bons autores no mercado. Por isso, vale falar um pouco sobre sua personagem, Clo Hayala, uma mulher histérica, traída por todos os lados, que sofria de distimias emocionais e a constante incompreensão por ter sido sempre subestimada e subjulgada pelos homens. Não era uma vilã, mas seus diálogos eram sempre precisos e ferinos, que tinham propósitos claros dentro de suas intenções. Aos poucos Clô ganhou mais destaque na trama, e terminou roubando a cena de todo mundo, e a novela das 23h na verdade se transformou em um show particular da atriz que há muito não se via, talvez, desde Roque Santeiro.

Para quem acompanhou os 64 capítulos, não há uma cena em que ela apareça, por mais curta que seja, que sua performance não seja memorável, digna de nota pelo humor drástico e caricato embutidos, e nem por isso bastante dramáticos em outras situações. A articulação verbal é aquela que conhecemos da atriz, mas as ênfases emocionais e gestuais eram precisas e teatrais, em um exagero que a personagem pedia e que caiu muito bem, muitas vezes levando a uma deliciosa nostalgia daquilo que chegou a fazer com Porcina na década de 80. O prazer particular e a dedicação em poder ousar em cima de uma personagem que ia na contra mão de muitas das anteriores que representou era evidente, e vê-la aos 64 anos interpretando alguém tão instável, cheia de diversas camadas dramáticas, não apenas mostrou uma faceta da atriz que não conhecíamos, como também deixou um gosto de quero mais tanto para o público surpreso, quanto para ela mesma.

Em suas últimas entrevistas, Regina agora admite que o excesso de papéis semelhantes em sua carreira tenha sido responsável por acostumar seu público a um tipo específico e dificultar seu acesso a outros personagens mais ousados na televisão. Ela afirma que isso nunca foi um problema, mas na atual fase de sua carreira, assim como outras atrizes de sua geração e com um currículo tão vasto como o dela, faz mais sentido do que nunca buscar projetos diferenciados que a faça se sentir mais livre e independente, sem pesos de audiência ou de sucesso de público, pois o que vale agora é sua realização pessoal. E é o que ela vem fazendo em projetos teatrais ou cinematográficos como esse.

E é assim que Gata Velha Ainda Mia se bem sucede.

Dirigido, escrito e produzido por Rafael Primot, o filme é um suspense psicológico e dramático que se passa dentro do apartamento de Gloria Polk, uma escritora feminista, famosa nos anos 70 e 80, que resolve publicar um novo livro depois de um hiato de mais de uma década. Por isso, concede uma entrevista a uma jovem jornalista, interpretada por Barbara Paz. Como todos os arcos dramáticos se desenvolvem apenas entre as duas personagens, falar mais sobre o enredo é revelar algumas surpresas que podem não ser muito originais, mas Regina consegue evoluir tão bem ao lidar com tantas texturas emocionais que Gloria Polk se torna uma figura exótica nos seus próprios termos, carregada de um humor ácido e depreciativo, nem por isso deixando de ser trágica.

É nesse filme que vemos Regina Duarte na sua forma mais crua e incomparável com qualquer um de seus trabalhos anteriores. Construída em cima de um figurino propositalmente datado e de apenas uma prótese dentária discreta para intensificar a cólera contra as mudanças comportamentais e de ideais que o tempo leva e traz, a atriz está completamente ausente de maquiagem, como que despida, o que tem sido a grande tendência das abordagens mais realistas do cinema atual. O trabalho desenvolvido por Primot sem dúvida conseguiu tirar da atriz o melhor desempenho de sua carreira, e isso não é exagero.

Embora a presença de cena e sua linguagem ainda se mantenha bastante formal, Regina consegue mesmo assim ser natural, espontânea e objetiva, ao mesmo tempo que se mostra mais atualizada e menos tradicionalista, longe dos vícios teledramatúrgicos que se confortaram ao longo dos anos. Talvez na vontade de também vê-la extravasar suas ânsias artísticas que se acumularam com o tempo, o diretor em momento algum subestima as capacidades da atriz, extraindo dela momentos bastante vicerais que poderão ser chocantes para aqueles que estão acostumados com a imagem sempre serena e comedida dos folhetins televisivos que ela trabalhou.

Barbara Paz não decepciona, mas sai ofuscada. Seu rosto de traços protusos e sua postura física naturalmente forte se chocam diretamente com a personagem de Regina Duarte, que já é forte o bastante para dominar as cenas sozinha, não havendo contrastes convincentes entre a personagem Carol e o cenário, ou entre Carol e Gloria. Chega a ser difícil aceitá-la como uma antagonista de fato, já que a química entre as duas atrizes e a interação de suas personagens, ao invés de se complementarem (como é sugerido pelo roteiro) soam forçadas, e a relação conflituosa de admiração e desdém se arrasta empurrada na base da insistência. Não são deméritos de Barbara como atriz, mas como dito, não há elementos contrastantes como acontece, por exemplo, entre as personagens de Judi Dench e Cate Blanchett no filme Notas Sobre Um Escândalo (Notes On A Scandal, 2006), já que a relação entre elas é bastante similar com a relação proposta no filme de Primot. Portanto há a impressão de que faltaram testes de elenco, e que o papel foi entregue a Bárbara mais por confiança e parceria pela amizade de longa data de ambos do que por algo previamente planejado e visionado com esmero, como aconteceu na escolha de Regina para o papel principal.

A trama se desenvolve gradualmente e fatos são revelados em momentos bem específicos para elevar a atmosfera tensa, trazendo à tona conflitos entre o que é realidade e o que é ficção, e entre a escritora e a jornalista, que a princípio o espectador não prevê. Mas infelizmente, na segunda metade, essa evolução perde um pouco o fôlego, e a imprevisibilidade construída no início da lugar para alguns deja vus àqueles que estão familiarizados com filmes estrangeiros do gênero. Tudo se conclui de uma forma até inesperada, mas faltou uma articulação mais fina dos fatos para realmente surpreender como deveria, porque todos os elementos estavam lá, prontos para aquela conclusão.

A ousadia de Primot em ter dado um papel que finalmente e novamente rendeu a Regina Duarte liberdade para criar, desenvolver e fugir dos estereótipos nos quais a televisão a aprisionou, bem como desenvolver com baixo orçamento um filme diferenciado, dentro de um gênero que raramente se vê no Brasil, já são méritos válidos. Infelizmente é um filme para baixo circuito, mas memorável pela grandiosa presença de cena que Regina Duarte proporciona, enfática nos diálogos muito bem escritos e uma parceria com um cineasta promissor que deu muito certo.

CONCLUSÃO...
Resumir dizendo que Regina Duarte simplesmente impressiona e entrega uma de suas melhores atuações até o momento (se não for a melhor), não é um exagero, mas um convite para ver com os próprios olhos e concluir o mesmo.

Nenhum comentário:

Add to Flipboard Magazine.