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domingo, 21 de dezembro de 2014

12 ANOS DE LIBERDADE...

★★★★★★★★★☆
Título: Boyhood
Ano: 2014
Gênero: Drama, Comédia
Classificação: 14 anos
Direção: Richard Linklater
Elenco: Ethan Hawke, Patricia Arquette, Ellar Coltrane, Lorelei Linklater
País: Estados Unidos
Duração: 165 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
A trajetória de 12 anos na vida de Mason e sua família, um garoto de 7 anos que terá de lidar com obstáculos, escolhas e peregrinar uma longa caminhada até seus 18 anos.

O QUE TENHO A DIZER...
2014 talvez seja o ano de Richard Linklater que, aos 54 anos, ganhou o documentário 21 Years: Richard Linklater (2014), lançado no final de Outubro, no qual os diretores Michael Dunaway e Tara Wood conseguiram reunir a maioria dos atores que trabalharam com o diretor para fazer uma retrospectiva sobre a forma como ele definiu a cultura pop norte-americana com relevância nos últimos 21 anos. O lançamento do documentário praticamente coincidiu com o lançamento do filme, que teve estréia no começo de Novembro, o trabalho mais ousado do diretor e, porque não, um dos mais ousados do cinema, já que foram 11 anos consecutivos de filmagens em uma produção que durou, ao todo, 12 anos, em um total de apenas 44 dias de filmagem.

Em 2002 o diretor colocou em prática a idéia que há muito tempo tinha em contar o desenvolvimento de um garoto em meio a suas relações familiares, tudo dentro de um espaço de tempo que iniciasse no seu primeiro ano escolar até seu primeiro dia de faculdade, pontuando as delícias e as complexidades de uma importante fase de aprendizados e adaptações responsáveis pela construção da percepção e do caráter do ser humano.

O diretor precisava de atores que se comprometessem a realizar as filmagens anualmente para que o registro do tempo como agente modificador fosse verossímil, e eles se comprometeram mesmo não havendo um contrato que os prendessem ao projeto, já que uma lei nos Estados Unidos proíbe contratos de trabalho que durem mais de sete anos. O roteiro também nunca foi completamente escrito, segundo Linklater, havia um enredo a ser seguido, e o final do filme também já era definido, mas a história foi desenvolvida ano após ano baseando-se sempre nas filmagens anteriores e nas mudanças que ele notava nos atores no momento específico em que se reuniam, pois queria respeitar essas naturais progressões e limitações do tempo. Muitas vezes o roteiro era finalizado na noite anterior do reinício de filmagens e era mantido aberto para o ano seguinte. As sequências anuais foram todas filmadas como um curta metragem de 15 minutos, e posteriormente editados como um longa.

Assim como nos filmes Antes do Amanhecer (Before Sunrise, 1995), Antes do Por do Sol (Before Sunset, 2004) e Antes da Meia Noite (Before Midnight, 2013), os atores principais também participaram ativamente do processo criativo, principalmente Ethan Hawke e Patricia Arquete, que construiram seus personagens baseando-se, respectivamente, em seu pai e sua mãe, o que de certa forma traz outra dimensão ao filme, fazendo-o também ser uma coletânea de pequenas experiências pessoais e referências biográficas além das do próprio Linklater tanto sobre sua vida pessoal, como de seus trabalhos anteriores.

O maior medo do diretor era de seu projeto não sair como o planejado, tanto que ele solicitou a Ethan Hawke, amigo e colaborador de longa data, a finalizar o projeto caso morresse. Para Ethan, ter feito um mesmo filme por 12 anos e depois ver no resultado final as mudanças e traformações físicas ocorrida no decorrer dos anos, foi como assistir uma sequência de fotos em timelapse sobre o ser humano.

Por fim tudo deu certo. Linklater não morreu e o comprometimento de todo o elenco foi o mesmo até o fim, com excessão de sua filha, Lorelei Linklater, que depois dos primeiros anos de filmagem perdeu o interesse e solicitou a seu pai que a personagem fosse morta. O diretor acreditou que seria uma reviravolta muito dramática para a proposta do filme, e conseguiu convencê-la e novamente entusiasmá-la a continuar. A produção também foi fiel e difícil, já que todo ano era necessário salvar alguns milhares de dólares para a conclusão de mais uma etapa de filmagem.

Definitivamente os esforços são notáveis, e o resultado de tudo é um filme que, embora longo em duração, em sua essência seja curto demais para resumir 12 anos. Mas a inegável habilidade de Linklater de lidar com assuntos verdadeiros e de forma realista, além da projeção bastante sólida do resultado final almejado, consegue fazer o filme se manter linear e bastante coerente, mesmo filmado e escrito em retalhos que visivelmente mostram as trasformações físicas e comportamentais de todos trazidas pelo tempo.

É impossível não associar o filme ao seriado Anos Incríveis (The Wonder Years, 1988), criado por Neal Marlens e Carol Black, que acompanhou a trajetória da infância até a adolescência do personagem Kevin Arnold e sua família frente ao período de grandes mudanças que os Estados Unidos passava nos anos 60. O projeto de Linklater é tão consistente quanto, e o restultado de ambos também é praticamente o mesmo. A grande diferença é que Linklater até define a história no tempo, e alguns dos fatores externos, tanto políticos quanto sociais, chegam até a ser citados, como a desaprovação ao governo de George W. Bush e a forte crença na época de que Barack Obama representava uma grande mudança positiva no país. Mas tudo isso é abordado apenas no intuito de dar profundidade aos ideiais progressista tanto do pai quanto da mãe e como esse pensamento é repassado a seus filhos como heranças construtivas ao invés de fazer desses temas referências de grande impacto em suas vidas. Por fim, o resultado de tudo se baseia unica e exclusivamente frente as escolhas pessoais de cada e que automaticamente refletem uns nos outros como um efeito dominó.

O que se vê como um todo é exatamente tudo aquilo que Linklater já abordou desde o clássico adolescente que o revelou, Jovens, Loucos e Rebeldes (Dazed And Confused, 1993), no qual mostra sem filtros as descobertas sexuais e lisérgicas da adolescência, até Antes da Meia-Noite (Before Midnight, 2013), o último episódio da cultuada trilogia romântica filmada com um espaço de 9 anos entre uma continuação e outra (e ainda há espaço para futuras continuações), na qual abordou de forma muito orgânica e expressiva o nascimento de uma relação que sobrevive, amadurece e envelhece com o tempo (o momento em que Mason caminha nas ruas conversando com uma colega em uma tomada contínua talvez seja uma referência direta à espontaneidade abordada nessa trilogia).

Portanto, acima de tudo, o filme também é um documento consistente de todo o estilo do diretor, que tem como marca registrada a abordagem do cotidiano na sua forma mais pura e pelo ponto de vista obsevador mais objetivo possível, e que o tempo é sempre o personagem principal e catalisador de toda sua visão artística.

Esse perído de doze anos que o espectador literalmente vivencia com o personagem Mason (Ellar Coltrane) consegue definir, tal qual as letras ou as notas de uma música definem uma melodia e suas sensações, como os fatos do cotidiano da vida familiar e as relações construídas com outras pessoas por onde passa, bem como as experiências ora empolgantes, ora frustrantes, foram importantes agentes transformadores que gradualmente o maturaram como uma pessoa excêntrica, sensível, introspectiva e ávida por desbravar mundos que desconhece. Uma forma muito sucinta de também definir que somos a conseqüência das experiências vividas, e que antes de julgarmos as atitudes ou o comportamento de outros, devemos conhecer sua história.

Também mostra que, dentro das constituições familiares modernas, embora a separação dos pais de Mason tenham psicologicamente impactado o personagem, isso não foi em momento algum pretexto para decisões erradas, atitudes explosivas ou uma juventude transviada justamente por conta do apoio e da sólida educação ofertada por eles de forma incondicional, tenha sido quaisquer as dificuldades que cada um deles passou. Dessa forma o diretor aborda que cada um de nós tem o seu próprio tempo para suas próprias descobertas e que para nada é necessário a pressa, apenas a paciência, compreensão e respeito.

A realidade construída por Linklater traz momentos poéticos e muito simbólicos para cada fase vivida pelo personagem, como no momento em que completa 15 anos e ganha de presente uma coletânea dos Beattles, uma Bíblia, um terno e uma espingarda, presentes com fortes significados simbólicos e únicos. Ou seja, diferentes níveis de cultura, crença e responsabilidades que, unidas em uma única cena, se chocam e resumem com pontualidade a complexidade e o caos latente da idade. Por outros momentos vemos o personagem em situações que levam o espectador a uma jornada mais nostálgica que nos relembra de nossa própria infância, e por outras vezes melancólica por nossa infância (talvez) não ter sido tão livre e espontânea como a de Mason, e que poderíamos realmente ter feito mais do que fizemos, e de que não é a vida que passa rápido demais sem percebermos, mas as lembranças que somem com o tempo e que encurtam nossa percepção sobre ele.

É o projeto da vida do diretor sobre um pedaço da vida resumido de forma precisa e emocionante, que firmam sua importância no cenário indie contemporâneo principalmente na realização de mais uma obra que fielmente retrata as precoces complexidades da vida e as escolhas que nos definem. Mesmo havendo aquele tom de que não é necessário levar nada a sério porque a infância e adolescência são fases para se cometer erros, como popularmente se ouve, é então que notamos a importância e a necessidade dessas fases serem respeitadas, compreendidas e limitadas não de forma proibitiva, mas direcionadas para o bem da maturidade, principalmente em uma época onde tudo está muito rápido e cada vez mais o ser humano as encurtam cada vez mais, atropelando tempos e espaços.

Uma pena que, dentro da proposta de longa duração de filmagem, alguns núcleos se perderam ou se concluíram mais rápido do que esperado, como a família do segundo casamento da mãe do personagem. Teria sido muito interessante se os irmãos adotivos de Mason e Samantha tivessem reaparecido apenas para concluir a relação construtiva e madura que tiveram, ou se tivessem sido citados novamente em alguma ocasião apenas para não deixar o arco dramático aberto e a sensação de que tudo foi passageiro e irrelevante. Ou uma razão mais fundamentada do terceiro casamento da mãe de Mason novamente não ter dado certo. Fica no ar se a relação foi uma repetição dos erros das relações anteriores ou quem foi o responsável pelo quê no conflito que se desenvolve.

Como sempre acontece com a maioria dos filmes independentes e experimentais - como esse de certa forma é - o desenvolvimento é lento, e muito para compreendê-lo demanda atenção aos detalhes. Não é todo público que tem paciência para isso ou disposição para captar os propósitos, mas ficarão bastante inspirados aqueles que se disporem a isso.

De qualquer forma, Boyhood tem sido muito bem aceito pela crítica e já está listado nos principais prêmios da temporada, automaticamente sendo um dos favoritos ao Oscar. Como sempre digo, não que isso hoje em dia signifique alguma grande coisa, mas ainda é um reconhecimento válido, um marketing positivo para uma obra como essa, principalmente em premiações que costumam favorecer apenas os filmes de grande circuito ou aqueles que conseguem entrar no grande circuito. E repetindo, talvez este seja o ano do diretor. Merecido, tanto pela obra em si, como pelo conjunto de trabalhos marcantes e memoráveis. Mais que tudo, coeso e fiel ao seu estilo, um diretor que conseguiu transformar o tempo em um objeto artístico concreto.

CONCLUSÃO...
Linklater é o diretor que mais conseguiu transformar o tempo em um personagem vivo, seja o tempo como um momento único, seja o tempo como uma sequência de situações que caracterizam seus personagens e suas escolhas. Mais um trabalho memorável e que atinge pontualmente cada um, independente da maneira, além de um projeto ousado e que resultou em um belíssimo resumo de uma importante fase da vida. Como dito por Hawke, como um timelapse do ser humano.

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