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domingo, 18 de maio de 2014

O EXTRAORDINÁRIO MUNDO DE JEUNET...

★★★★★★★★★☆
Título: Uma Viagem Extraordinária (The Young And Prodigious T.S. Spivet)
Ano: 2013
Gênero: Aventura, Fantasia
Classificação: 10 anos
Direção: Jean-Pierre Jeunet
Elenco: Kyle Catlett, Helena Bonham Carter, Callum Keith Rennie, Niamh Wilson, Judy Davis, Dominique Pinon
País: França, Canadá
Duração: 105 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Sobre T.S. Spivet, que resolve fazer uma viagem do oeste para o leste dos Estados Unidos para receber um prêmio científico. O que eles não sabiam é que a pessoa a receber o prêmio tem 10 anos de idade.

O QUE TENHO A DIZER...
T.S. Spivet é dirigido pelo magnífico diretor francês Jean-Pierre Jeunet, do qual sou suspeito para escrever, já que sou grande fã. Felizmente tive oportunidade de assistir todos seus filmes e, consequentemente, acompanhar essa brilhante carreira de poucas obras, mas relevantes e de uma riqueza narrativa e visual raros no cinema atual.

Claro que pouca gente conhece Jeunet se você perguntar pelo seu nome, mas todo mundo vai dizer que sabe quem é quando você disser que ele é o diretor de O Fabuloso Destino de Amelie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, 2001), seu primeiro filme mais famoso e mundialmente conhecido. Ao mesmo tempo, provavelmente, ninguém vai conhecer nada mais além disso, o que é uma grande... grande pena. Por isso, vale mesmo fazer uma breve apresentação do diretor antes de falar do filme, até porque todo novo filme de Jeunet merece um grande comentário.

Jeunet começou a carreira com longas em parceria com seu amigo, Marc Caro. O primeiro filme, Delicatessen (1999), chamou atenção pela sua atmosfera pós-apocalíptica bizarra, mas ao mesmo tempo leve e curiosa pela narrativa diferenciada, o humor pra lá de obscuro e principalmente pela facilidade que o diretor tem em criar empatias entre o público, suas histórias e seus personagens, mesmo quando estes são estranhos, esquisitos, com atores feios ou de uma beleza exótica que fuja completamente de qualquer conveniência. Esta parceria com Marc Caro foi se repetir com o segundo filme, Ladrão de Sonhos (La Cité Des Enfants Perdus, 1995), talvez um dos filmes mais visualmente deslumbrantes do diretor, mais colorido que Delicatessen, um pouco menos sombrio, mas muito mais fantasioso e emocionante. O sucesso do filme rendeu um jogo de video game igualmente belo e fiel à história do filme.

Dois anos depois a parceria entre Jeunet e Caro ficou abalada quando Jeunet aceitou dirigir Alien - A Ressurreição (Alien: Ressurection, 1997) e Caro não viu interesse algum na produção, embora ele tenha auxiliado o amigo por diversas vezes. Mesmo assim o filme não apenas é considerado o pior da franquia como é praticamente um arrependimento do próprio diretor, que sofreu duras críticas pela sua sólida base de fãs. Houve intensas dificuldades na produção, o estúdio mandava e desmandava, fazia e desfazia mil coisas enquanto, ao mesmo tempo, havia um intenso problema de comunicação entre o diretor (que não fala inglês) com o roteiro, os atores e toda a equipe. Tanto foi assim que, propositalmente ou não, ele ficou aproximadamente quatro anos longe das câmeras. Foi quando ele finalmente pegou o mundo de surpresa com Amelie Poulain e a volta de todo seu fabuloso mundo surreal, fantasioso, mas agora mais doce, em um tom mais alegre e cômico que anteriormente, talvez por novamente haver a falta do peso das mãos de Marc Caro.

Como dito, Amelie foi seu filme de maior sucesso, e depois dele Jeunet encontrou em Audrey Tautou sua musa, e a parceria com a atriz se repetiu com o belíssimo e delicado Eterno Amor (Un Long Dimanche de Fiançailles, 2004), seu segundo filme mais famoso e conhecido. Novamente Jeunet recebeu críticas de sua base de fãs, dizendo que ele agora havia se rendido ao cinema comercial por repetir a mesma fórmula de Amelie.

Jeunet sumiu do cinema novamente, mas dessa vez porque ficou preso na produção de As Aventuras De Pi (Life Of Pi, 2012) por dois anos. Segundo o diretor, o filme já estava pronto: o roteiro já havia sido escrito, as locações de filmagem já haviam sido pesquisadas e inclusive o storyboard já havia sido feito. Mas pelos constantes adiamentos do estúdio, Jeunet se demitiu da produção e escreveu a história de Micmacs - Um Plano Complicado (Micmacs à Tire-Larigot), que foi lançado apenas em 2009. O filme não passou nem perto do mesmo sucesso e reconhecimento dos dois anteriores, o que é triste, já que é igualmente fantástico em todos os sentidos em um filme onde todos os personagens foram baseados em personagens de desenhos animados, o que acentuou mais ainda a marca do diretor. Nesse meio tempo, em 2008, Elizabeth Ezra lançou suas análises sobre o diretor contemporâneo para a coleção Contemporary Film Directors, contendo comentários dele mesmo sobre suas obras e inspirações.

Um novo hiato de quatro anos aconteceu até T.S. Spivet chamar sua atenção. O filme é baseado no livro The Selected Works Of T.S. Spivet (2008), do norteamericano Reif Larsen. É o segundo filme em lingua inglesa do diretor, só que ao contrário do que aconteceu em Alien, vemos aqui que não houve problemas de comunicação, nem de roteiro (que foi escrito por ele mesmo em parceria com Guillaume Laurant), e o resultado é um filme redondo, com começo, meio e fim, que segue sem tropeços ou buracos.

O filme conta a história de Tecumseh Sparrow Spivet, um garoto prodígio de dez anos de idade (no livro ele tem doze anos) que mora em uma isolada fazenda no extremo Oeste dos Estados Unidos, que vê em tudo uma oportunidade de estudar as razões físicas de existirem no seu sentido mais científico. Aos quatro anos de idade, ele criou seu primeiro experimento, e aos dez ele conseguiu montar a roda perpétua, um gerador de energia que tem autonomia para funcionar por 400 anos sem consumir qualquer outra energia, que seria responsável por mudar toda a ciência. Por conta disso ele é chamado para receber um importante prêmio da instituição científica Smithsonian, no leste dos Estados Unidos, que daria o direito ao vencedor a um grande discurso em Washington. Dentro de uma precoce crise existencial por conta da perda de seu irmão gêmeo e demais conflitos familiares que ele julga serem por sua culpa, o personagem resolve fugir sozinho, pegando um trem que cortará todo o hemisfério norteamericano para chegar a seu destino.

Assim como todos seus filmes anteriores (com excessão de Alien), T.S. Spivet possui uma linguagem visual forte e que abusa no uso das cores primárias e de designs assimétricos ou de incomum simetria, já que os elementos do cenário e objetos de interação entre o personagem e o meio são mais do que um mero design de produção, mas partes vivas da narrativa, da visão ingênua e da imaginação infantil e particular que Spivet tem sobre o mundo. A angulação das câmeras em planos superiores e inferiores para intensificar a fragilidade ou a hostilidade dos personagens, além da excentricidade de cada um deles também é uma das marcas registradas do diretor, como caricaturas que saem de desenhos animados, que possuem uma simpatia e humor inerentes, responsáveis pela empatia instantânea com o espectador. Há também a forma narrativa em surpreender ou causar um leve suspense apenas omitindo informações chaves, e por isso nunca sabemos (até momentos antes do fim), a verdadeira razão de Spivet se sentir responsável por tantas coisas, ou nunca sabermos quais personagens se tornarão amigos ou vilões em sua trajetória, como no momento em que ele pega carona com o esquisito caminhoneiro, um momento genuíno de Jeunet de nos mostrar como podemos subjulgar alguém apenas pelas suas aparências ou atitudes. Há também referências sobre seus filmes anteriores o tempo todo, como a jornada do personagem principal pela busca ou compreensão de algo, a referência sobre ausências familiares, ou até mesmo sobre a vilania de alguns, como a caricatura da personagem G.H. Jibsen (Judy Davis), que se assemelha muito às irmãs malévolas de Ladrão de Sonhos, vividas pelas atrizes Odile Mallet e Geneviève Brunet, mas aqui de uma forma muito mais cômica e leve. Enfim, é um típico filme de Jean-Pierre Jeunet, que mesmo com todos os mesmos traços de seus filmes anteriores, não deixa de ser deslumbrante e um prazer indescritível, além de também ser emotivo na sua forma simples e ingênua de lidar com os conflitos dos personagens, numa delicadeza rara de se ver no cinema.

Tem sido comparado a A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011), de Martin Scorcese, por também contar em 3D a jornada de um personagem infantil. Mas a comparação, acima de tudo, é por sofrer da mesma crise de identidade em não saber para qual público ele foi feito ou a qual público ele deve ser direcionado. Diferente de Hugo, que pretendeu recontar a história do cinema francês e ter deixado tanto crianças e adultos mais deslumbrados com as imagens e bastante cansados pela longa duração (126 min.), em Spivet esse problema não acontece, pois Jeunet não se utiliza de uma história muito complexa para criar a bela narrativa contada sem cansaços. Os adultos compreenderão e sentirão melhor as nuances dramáticas, enquanto o público infantil ficará deslumbrado com as peripécias do garoto e todo o visual do mundo particular de Spivet. Independente de algumas similaridades com Hugo, é importante saber que o filme de Scorcese foi uma homenagem ao cinema francês, e uma das referências do diretor americano, além de George Meliés por sua excelência, foi Jean-Pierre Jeunet, que sempre foi fiel ao legado de Meliés.

Não há como negar que a maneira adulta como Jeunet conta uma história por um ponto de vista infantil ou ingênuo é marcante e consegue atingir os diferentes públicos sem dificuldade. Reif Larsen, autor do livro, afirmou em uma entrevista que a inspiração de escrever a história veio sobre sua curiosidade sobre o estereótipo do cawboy do Oeste norteamericano, e porque essa imagem é tão forte até os dias de hoje, além de ter se transformado em uma referência mundial do caráter durão, irredutível e pouco adaptável. Durante as pesquisas sobre o Oeste, o escritor acreditou ser interessante mostrar uma história por um ponto de vista infantil, onde a criança fosse completamente diferente das heranças culturais daquela região, mas que ao mesmo tempo mantivesse em suas raízes características que o fizesse sobreviver grandes dificuldades mesmo sendo tão pequeno, o que no fim faria da sua determinação um caráter e aquilo que o caracterizaria definitivamente um "cowboy", mesmo não estando de chapéu e espora sobre um cavalo. O livro recebeu críticas positivas, e sua maior atenção foi voltada ao layout repleto de gravuras e ilustrações que complementam a narrativa. Por isso não é de se espantar que a obra tenha chamado a atenção do diretor, já que também é sua característica utilizar jogo de imagens para ilustrar de forma mais didática e dinâmica a história contada.

Todo o elenco é americano ou britânico, com excessão do conterrâneo Dominique Pinon, amigo pessoal e que já é regra marcar presença em todos os filmes do diretor. É também a estréia do ator mirim Kyle Catlett no cinema (ele será o protagonista da refilmagem de Poltergeist em 2015) e só deixa a desejar em alguns poucos momentos dramáticos, mas que em nada atrapalha o desenvolvimento, e chega mesmo a surpreender em vários outros. As únicas engasgadas de Jeunet talvez tenha sido colocar alguns flashbacks em lugares indevidos, ou de não ter sido mais firme em momentos dramáticos solo do garoto. A conclusão um tanto rápida talvez quebre um pouco toda a maravilhosa experiência, mas a satisfação como um todo, no fim das contas, não sai prejudicada.

Toda essa imaginação do diretor foi transposta para a tela pela primeira vez com câmeras digitais 3D. Assim como Scorcese fez em Hugo, Jeunet também teve o cuidado e a delicadeza de montar cena a cena de todo o filme dentro da melhor qualidade para que o 3D pudesse oferecer toda a experiência possível de dimensões espaciais e profundidade. E assim Jeunet nos imerge em seus filmes, em um mundo fantasioso e belíssimo, que vaga entre o cinema clássico e o moderno sem fugir das raízes do cinema francês, nos dando oportunidade para sonhar novamente, como imaginava George Meliés.

Embora seja um filme de um diretor francês, ele é americano, para um público americano, mas por um ponto de vista francês, talvez um agradecimento de Jeunet à homenagem que Scorcese fez aos franceses com Hugo. Mesmo assim ele ainda não foi lançado nos Estados Unidos. A Weinstein Company pretende lança-lo no fim do ano, boa época para promover filmes mais artísticos e sérios para serem considerados na temporada de premiações, o que é merecido a Jeunet.

CONCLUSÃO...
Novamente é Jeunet trazendo para as américas seu maravilhoso método fantástico francês de fazer cinema e nos imergir em imagens deslumbrantes e personagens carismáticos. Como uma maravilhosa sobremesa para os olhos, T.S. Spivet pode não ser seu melhor filme, mas ainda está longe de ser ruim, além de ser visualmente grandioso em cores, texturas e nuances dramáticas em igual medida.

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