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terça-feira, 27 de novembro de 2012

ONDE AS ROSAS SELVAGENS DE NICK CAVE NASCEM...

★★★★★★★
Título: Os Infratores (Lawless)
Ano: 2012
Gênero: Drama, Ação, Suspense, Policial
Classificação: 16 anos
Direção: John Hillcoat
Elenco: Tom Hardy, Shia LaBeouf, Jason Clarke, Guy Pearce, Jessica Chastain, Mia Wasikowska, Dane DeHaan, Gary Oldman
País: Estados Unidos
Duração: 116 min.

SOBRE O QUE É O FILME?
Na terceira década do século 20, durante a "Lei Seca" nos Estados Unidos, uma cidade no sul da Virgínia se transformou em um dos maiores centros de produção e comercialização ilegal de bebida alcólica, onde a lei deixou de existir para dar lugar à máfia do álcool. Nessa cidade vive a família Bondurant, conhecida por sua austeridade, pela qualidade de seu whisk branco, e outras lendas urbanas que os rodeiam. Tudo era um caos controlado, até a chegada de um Agente Especial enviado pelo Promotor do Estado, que irá a todo custo ignorar a falta das leis para impor as suas próprias e derrubar a qualquer custo a família mais dura da cidade, os Bondurant.

O QUE TENHO A DIZER...
Dirigido por John Hillcoat, o mesmo dos ótimos A Estrada (The Road, 2009) e A Proposta (The Proposition, 2005). Ele ficou conhecido dirigindo vídeos de música para importantes artistas do rock como Nick Cave, Siouxie & The Banshees, Deepeche Mode, Manic Street Preachers, Placebo, Muse, dentre outros, antes do reconhecimento ganho com filmes bem recepcionados pela crítica. Amigo pessoal de Nick Cave, a amizade rendeu bons trabalhos ao longo de sua carreira como diretor de longas metragens, sendo este filme o terceiro na parceria do diretor com o multitalentoso artista australiano que assina o roteiro.
Cantor, músico, compositor, escritor, roteirista e eventualmente ator, Nick Cave é mais conhecido por trabalhos às vezes obscuros, densos ou cruéis, mas sempre mantendo uma linha poética e refinada que aliviam essas características em seus trabalhos.
Por isso este é um daqueles poucos filmes que conseguem realmente surpreender e impressionar não apenas por ter qualidades ímpares e que funcionam com coerência, mas também por ser, de certa forma, baseado em um material histórico que pouca gente tem conhecimento a respeito: a máfia do álcool que tomou conta dos Estados Unidos durante praticamente uma década (1919-1933) com a Lei Seca instaurada em todos os estados do país.
A Lei Seca foi uma ação apoiada fortemente por Protestantes e mulheres, instaurada ainda durante a Primeira Guerra. Dentre as razões dos movimento sociais a favor da proibição da venda de bebidas alcólicas (não podiam ser vendidas bebidas com mais de 2,5% de álcool) estavam: destruir a corrupção existente nos Saloons; acabar com a política dominante de indústria cervejeira alemã; a diminuição da violência doméstica; e aumentar a estocagem de grãos e cereais para o consumo na guerra. Não adiantou muito, já que o consumo do álcool aumentou significantemente em alguns locais específicos, assim como a criminalidade relacionada à sua produção e distribuição, principalmente nos estados da Califórnia e Virgínia.
Por ter se tornado um produto ilegal, obviamente houve o surgimento e crescimento da máfia e guerra entre gangues produtoras e distribuidoras para o domínio do comércio ilegal. Por mais de dez anos os Estados Unidos viveu sob a sombra da emenda proibitiva, e com o passar dos anos, principalmente durante a Grande Depressão, a Lei Seca se tornou impopular, criticada e um exemplo da hipocrisia e da destruição do país e de suas liberdades.

A anti-proibição foi liderada por uma das mulheres que, a princípio, apoiavam a Proibição. Pauline Sabin passou a discursar contra e apoiar uma grande reforma, afirmando que a derrubada da Lei não apenas poderia favorecer o governo com a cobrança de taxas e impostos às produtoras, que seriam muito importantes para o país, como também diminuiria consideravelmente a violência e a "terra de ninguém" que alguns lugares haviam se transformado. O discurso coerente de Pauline foi apoiado principalmente por Franklin Roosevelt, que ao se tornar presidente dos EUA em 1933, assinou a derrocada da proibição no país, deixando a cargo dos estados decidirem suas leis sobre isso.
No meio desse "breve" e pouco conhecido quiprocó (ao menos por aqui) na história norte-americana estava a família dos irmãos John, Howard e Forrest Bondurant, destiladores clandestinos que moravam no Condado de Franklin, no sul da Virgínia, conhecida como "a capital mundial do whisk branco", ou moonshine, como a bebida é popularmente conhecida por lá. Esse termo deriva de sua forma de produção ilegal, já que as destilarias clandestinas funcionavam durante a noite e madrugada (sob a "moon shine", ou seja, o "brilho da lua"). Esses destiladores utilizavam um processo usando radiadores de carro para a condensação do produto. O chumbo, bem como a ferrugem, presente nos ligamentos tubulares, e também o metanol, por conta da fermentação dos grãos ou cereais utilizados na produção, comumente estavam presentes. Embora não em quantidades letais, com excessão de destiladores inescrupulosos que aumentavam a quantidade de metanol barato para enganosamente fortificar o produto, as substâncias tóxicas ainda eram presentes devido a precariedade de algumas produções.
Havia um teste popular feito para descobrir a pureza e a procedência, ao encher uma colher e atear fogo. O destilado confiável deveria queimar uma chama azul, enquanto o adulterado queimaria amarelo. Se houvesse a presença de óleos tóxicos dos radiadores, a chama queimaria em um tom avermelhado, sendo então descartado por sua alta toxidade. Era um método popular seguro, mas que não evitava descobrir a presença do metanol, já que sua chama é invisível.
E assim a família Bondurant sobrevivia e, de certa forma, comandava o condado, alimentando a sede da população com destilados de qualidade ao mesmo tempo que a austeridade, dureza e frieza dos irmãos Forrest e Howard se transformaram em lenda, dando a eles a fama de "invencíveis" não apenas no condado, como nos arredores, o que evitava a aproximação de homens da lei e intimidava inimigos que evitavam inimizades ou confrontos a qualquer custo.
Tudo muda quando, no auge da Lei Seca, o promotor do estado envia para o Condado o agente especial Charlie Rakes (Guy Pearce), com a finalidade de por fim ao tráfico de bebida e destruir todas as destilarias clandestinas existentes, bem como qualquer gangue que dominasse o local. Rakes invade o território dos Bondurant e não apenas os ameaça diretamente como espanca o irmão mais novo, Jack (Shia LaBeouf), como um aviso a Forrest e Howard de que desistam da tentativa de obstruir a lei. O episódio não apenas revolta os irmãos como também é o ponto de partida para uma guerra que dividirá o condado entre aqueles que acreditam em um país livre e aqueles que acreditam nas incoerentes punições da lei.
Sem dúvida o roteiro de Nick Cave e a direção de  John Hillcoat se sobressaem não apenas por estabelecer sucintamente todos os fatos históricos descritos acima, como também pincela as biografias do trio de irmãos baseadas no livro The Wettest County In The World (2008), de Matt Bondurant, decendente direto da família, já que ele é neto de Jack Bondurant, o mais novo dos irmãos. Violento do início ao fim, foi geralmente bem recebido pela crítica especializada e em grande maioria pela leiga, mas muita gente tem saído do cinema um tanto chocada com a crueldade de algumas cenas, que de fato são extremamente impactantes pelo diretor não esconder a brutalidade e o medo coletivo pelo qual aquela população passou. É também de um suspense angustiante, mesmo quando alivia. O psicológico de quem assiste está tão afetado que continua em estado de alerta, apreensivo por alguma coisa que possa acontecer, mesmo que não aconteça.
O elenco sem dúvida alguma é estelar. Shia LeBeouf finalmente perdeu aquela cara de garoto atrapalhado e consegue convencer como o caçula que se sente inferior por não ter o sangue frio e a determinação dos outros irmãos, numa evolução de garoto frágil e apaixonado que deve passar pelos tortuosos caminhos que seus irmãos já passaram para finalmente encontrar em si aquilo que ele acreditava não existir. Jessica Chastain, que ficou reconhecida e roubou a cena com uma interpretação pra lá de cativante em Vidas Cruzadas (The Help, 2011), impressiona mais uma vez como uma ex-dançarina de cabaré que foge para o interior da Virgínia para tentar escapar da brutalidade machista de Chicago. Tom Hardy, que agora está conseguindo alguma ascenção e reconhecimento em Hollywood graças a sua participação como o vilão Bane em O Cavaleiro das Trevas Ressurge (The Dark Knight Rises, 2012), pode ser muito expressivo em toda sua truculência, mas tal qual o vilão Bane, parece que ele está deixando de lado a sutileza que ele tinha antes da fama e entrando numa atuação caricata e viciada, num misto exagerado de Dirty Harry e Duke Mantee, rosnando com uma frequência irritante e desencessária para construir um personagem que naturalmente dispensa exageros. Uma pena, já que esses exageros são os únicos pontos que, quando acontecem, estragam o filme como um arranhado na vitrola durante um tango. Mas quem rouba a cena é Guy Pearce, como o agente de sexualidade duvidosa, em um vilanismo e crueldade fria, cheia de um sórdido requinte tal qual o nazista interpretado por Christopher Waltz em Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009).

Outro grande defeito do filme é não ter aproveitado mais o ator Gary Oldman. Sua participação é bastante pequena e seu personagem era interessante e podia ter tido um maior desenvolvimento na história do que algo tão breve, frente à grande apresentação que o personagem teve e que, posteriormente, parece ter sido esquecido.
Não dá pra ignorar o fato de que é um dos filmes mais expressivos do ano, uma história forte e duplamente real, tanto pelos fatos históricos quanto pelas biografias envolvidas. Segundo o próprio roteirista, Nick Cave, muitas das cenas mais violentas do livro tiveram que ficar de fora, mas que ele tentou ao máximo manter a atmosfera um tanto lírica do livro e que repentinamente é desconstruída numa violência brutal como um tapa na cara. E é exatamente dessa forma como o diretor faz o espectador se sentir. É também sobre uma máfia diferente, de gangues poderosas e de um mundo corrupto e sem leis, numa ironia estranha, mas verdadeira. Diferente de outros filmes e do certo niilismo presente nesse gênero, como os filmes de Scorcese e sua constante pregação determinista de que gângsters devem pagar pelos seus pecados ou serem punidos duramente por seus crimes, aqui a situação é inversa, e mostra que definitivamente muitas vezes os fins justificam os meios para a esperança ser mantida. 
Nick Cave também assina a trilha sonora juntamente com Warren Ellis, acrescentando sua identidade ao estilo bluegrass, deixando de lado a raiz norte-americana de realizá-lo e fazendo-o soar moderno e ousado, ao mesmo tempo que mantém as características básicas do estilo, em um poder sonoro com letras densas e poéticas, em total coerência com as cenas. Um trabalho tipicamente Nick Cave.

Também acredito que o fim poderia ter sido menos corrido, e perto de tanta perversidade mostrada, deveria ter sido algo mais elaborado e construído para a satisfazer a sede de vingança que o público alimenta por duas horas.
CONCLUSÃO...
Impressionante e tenso, ao mesmo tempo que pode surpreender em sequências inusitadamente delicadas e cômicas no meio de tanta violência brutal que sutilmente inspira uma esperança difícil, mas alcançável. Uma produção caprichada, cheia de atenção a pequenos detalhes historicos e biográficos. Uma pena que, embora uma história tipicamente norte-americana, o filme não foi feito da forma norte-americana esperada, e provavelmente será esquecido na temporada de premiações. Pra mim, os únicos defeitos que se destacam no filme é a atuação caricata e viciada de Tom Hardy, bem como não ter aproveitado melhor um elenco de apoio que podia ter sido melhor explorado. De qualquer forma, suas qualidades ofuscam os poucos defeitos, e o resultado é satisfatório e surpreendente. Uma história típica para um diretor como Scorcese, mas que Scorcese mesmo não teria dado uma identidade tão peculiar, mesmo com os defeitos que ele com certeza teria um cuidado fundamental.

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