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terça-feira, 12 de dezembro de 2017

DA GÊNESIS AO APOCALIPSE...

★★★★★★★★☆
Título: Mãe! (Mother!)
Ano: 2017
Gênero: Suspense, Drama
Classificação: 14 anos
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed Harris, Michelle Pfeiffer, Kristen Wiig
País: Estados Unidos
Duração: 121min.

SOBRE O QUE É O FILME?
O relacionamento de um casal é posto à prova quando um grupo de estranhos os visitam, atrapalhando a vida tranquila que tinham.

O QUE TENHO A DIZER...
Quando Deus criou a Terra, ele deu a Natureza o poder do ciclo perpétuo da vida, e deste ciclo a criação de outras vidas. Mas não era o bastante, e à sua imagem e semelhança, colocou na Terra um homem, chamado Adão para ter alguém que pudesse amá-lo e adorá-lo. Para tirar a solidão de seu filho, dele foi retirada uma costela, e dela Eva foi feita. Ambos podiam usufruir de tudo aquilo que a Natureza poderia oferecer, só não podiam cometer o pecado original. O pecado original retirou de seus filhos a atenção e devoção, e dele nasceram Caim e Abel. A inveja levou o mais novo a matar o irmão mais velho, e assim os pecados foram perpetuados por seus descendentes, geração após geração, que juntos aos sete pecados capitais e a quebra dos 10 mandamentos, gerariam o caos, a guerra e à destruição. Deus não é perfeito, pois sua imagem e semelhança cometeu erros, mas em suas mãos existe o poder para destruir e reconstruir de novo, e para isso ele precisa apenas da materia prima mais pura da Mãe de todas as mães, aquilo que ela sempre ofereceu, mas ele nunca aceitou por ter ficado cego pelas belezas que criou.

E dessa mesma forma, mas contado de uma maneira muito mais peculiar, é que a história do casal interpretado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence começa em sua bela casa de campo, afastados de qualquer civilização.

Sim, a base de todo o filme é o resumo dos livros Genesis e Apocalipse, da criação e da destruição. Dizer isso não é um spoiller, mas um favor para a melhor compreensão do filme e dos impactos que ele gera ao longo de suas duas horas. Mas falar sobre a história propriamente dita e suas mais obvias referências, é fazer sentido até aí, porque depois disso o filme é ribanceira abaixo para uma enxurrada de associações, metáforas e alegorias de outras metáforas e alegorias, já que não só da Bíblia que tudo se baseia. Como dito, o filme apenas utiliza o livro religioso como as principais bases da história, mas é possível identificar outras, como a da casa viva, que se torna o reflexo de quem vive nela. E assim como em A Guerra dos Roses (The War Of The Roses, 1989), no qual o cenário se desfalece conforme a relação entre o casal protagonista chega ao ápice da auto-destruição, o mesmo é de ser esperado no filme de Darren Aronofsky, mas com muito mais informações e parenteses até isso acontecer.

Não era de se esperar algo diferente do diretor, o qual também assina o roteiro e a produção, tal qual fez com seus filmes anteriores, e igualmente perturbadores, Requiem Para Um Sonho (2000) e Cisne Negro (2010), além dos questionamentos religiosos e espirituais que ele faz em Noé (2014), algo que ele volta a explorar aqui, mas de maneira muito mais crua e chocante.

Dessa vez o diretor viaja fundo nas entranhas da humanidade, nas suas crenças e descrenças, da sua forma mais simbólica até a mais folclórica. Se em Requiem ele divagou sobre os prazeres pessoais e até que ponto os diferentes personagens estavam dispostos a ir pelos seus sonhos e vontades, e em Cisne ele pegou praticamente a mesma premissa, mas condensou o processo obsessivo na protagonista, aqui ele também volta a dialogar sobre vontades, obsessões e ambições, mas de uma forma tão abrangente e espalhada que é difícil não pensar em mil coisas ao mesmo tempo.

De uma esposa dedicada até a incontrolável ira de uma mãe, da misoginia ao abuso e a violência física. O filme de Arenosfky é perturbador no seu inexplicável trajeto final. Um misto de sensações que extrai e nos joga na cara as piores naturezas humanas. Por situações muito rápidas, Arenofsky tenta até ser didático ao seu espectador com as referências que usa, como quando o personagem de Ed Harris está no banheiro e Lawrence enxerga uma ferida em sua costela, ou quando a própria Lawrence diz próximo ao fim do filme que precisa organizar a bagunça deixada pelo Apocalipse. Apenas dois exemplos de vários espalhados por toda a trajetória do casal.

Essa é a intenção do diretor desde o princípio, tanto que a polêmica criada em torno do filme surgiu justamente pelas pessoas não terem conseguido entender quais eram as alegorias, e aqueles que entenderam consideram o filme uma heresia, uma deturpação religiosa sem fim, dentre outros absurdos.

Mas Mãe! não é apenas de religião ou espiritualidade, mas a consequência de tudo isso e de toda a relação humana, sendo, acima de qualquer coisa, uma ode (ou um novo requiem) ao inconveniente: das heranças culturais machistas; da imposição social; da opressão sexual; da intrusão; do desrespeito; da desvalorização humana; das ilusões sociais; da impotência; da inferiorização; da cultura vazia; da idolatração; da deturpação de valores; do definhamento humano; da exploração; do abuso; da ignorância e incompreensão; do medo, do caos, do pânico e da discriminação; do colapso; da segregação; da re-ascensão conservadora; da intolerância; da violência gratuita e sem propósito; do surto coletivo; do comportamento de rebanho; da perda da fé, da identidade e da esperança, etc... etc...

Das doenças sociais que nos afetam, transformam nosso meio e nos fazem ser o que somos. A imagem e o resultado nu e cru do fim que nós mesmos construímos.

É como o poema transformador do personagem de Javier Bardem, responsável por abrir os olhos daqueles que o leem, assim como os cegos que voltaram a enxergar em Ensaio Sobre A Cegueira, de José Saramago. É a Caixa de Pandora da Mitologia Grega aberta, liberando todos os males e, junto, indo embora a única coisa que não poderia jamais ter saído.

É óbvio que a viagem de Aronofsky é muito mais lisérgica. Segundo ele, é um filme psicológico-delirante, construído para não ter uma lógica óbvia, e quanto mais se tenta encontrar respostas ou significados para ele, mais questionamentos ele cria, numa onda sem fim. É um daqueles típicos filmes que favorecem a masturbação mental, mas que de uma forma intrigante desenvolve questões humanas profundas e de problemas tão atuais e viscerais que chega a ser indigesto. 

Da criação ao apocalipse, da origem ao fim, e do fim ao recomeço. É assim que Mãe! é. Um filme que nem agrada e nem desagrada, e terá uma interpretação diferente para cada pessoa dentro de suas referências principais. Por isso eh um filme desconfortável, polêmico e controverso. Todo o exagero do ser está lá, e a reação exagerada do público quando ele foi lançado, como aconteceu com as vaias em Cannes, apenas faz toda a ficção delirante do longa ser um mero reflexo da nossa mais estúpida realidade.

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